terça-feira, 17 de abril de 2012

Derramamentos

É justíssimo que se reserve o 17 de abril para entrar em solidariedade mundial com os portadores de hemofilia – aquela delicada condição em que o corpo simplesmente não consegue, ou mal consegue cicatrizar-se. Enquanto os não portadores contam com as plaquetas para frear sangramentos, hemofílicos as têm poucas e incapazes de lacrar feridas satisfatoriamente. Entornam-se, entornam-se em vazamento que não acaba mais, entornam-se para sempre, numa espécie de suicídio involuntário. Apenas homens apresentam a doença – que desde meus tempos de aula de genética (azão com azão, azinho com azinho...) me impressiona bem muito.

Porque vejamos. A criatura está na infância e será fatalmente tratada pela mãe (seres desesperados, as mães) com apreensões de cristal ou porcelana. Moleque que é moleque se rala, se lanha, se espadana por completo, e volta do recreio ou do sítio da avó como um veterano do front; sai de casa com os sete buracos de praxe na cabeça, retorna com 223, onze dos quais pedindo sutura. Mal consigo imaginar, então, a angústia de quem quer o filho tão feliz quanto vivo, tão brincante quanto ileso de todo e qualquer arranhão. O desassossego de alguém cujo menino tem de ser menino com exagerado cuidado. É coisa tênue à beça, essa linhazinha entre o gozar a vida e o beijar a morte – e encarar uma tal oscilação com tanta clareza, e desde tão cedo, ganha ares de poesia triste. Todos os meus respeitos às famílias e aos pequenos que devem aprender a lidar com a própria fragilidade sempre à espreita.

Há esses de quem o corpo, sendo incapaz de conter-se, nasce como que inimigo de si mesmo. Mas não posso deixar de pensar que há também os incontinentes emocionais, aqueles de sentimento excessivo que vaza, vaza, vaza de não terminar nunca; aqueles de artérias afetivas de vidro, eternamente prontas para escoar aos últimos mililitros em cada rachadura do dique. Que eram poetas românticos senão esses – esses que escolheram não cicatrizar nem os menores traumas e decepções, mas, ao contrário, derramá-los todos com desespero amplificado, em cada tanto de poesia louca e vida furiosa? Que são os “de pavio curto” senão esses – esses que se decidiram inábeis para toda serenidade e preferem afogar os aborrecimentos vomitando impropérios até a última raiva? Que são as “mulheres que amam demais” senão essas – essas que resolveram o amor como um pretexto para se devorarem como cera de vela, se derreterem, se dissolverem, se liquefazerem de aflições, até não sobrar mais gota de si que as sustente para uma vida digna, razoavelmente?

Tinham/têm a hemofilia menos decisiva e menos direta que a congênita, e talvez nem por isso menos perigosa. Porque não há possível doação de sensatez; inexiste transfusão de pensamento que salve quem não se quer salvo, que cure quem não se aceita curado, que convença quem não se deseja convencido. Não há plaqueta externa que remende corações convictamente esfareladiços. Não há plasma que detenha em lago quem se vê como pororoca, torrente, enchente. Não há contenção bastante para quem se determinou a causar-se estragos de jamanta.

A humildade, só, nos coagula.

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