terça-feira, 1 de maio de 2012

Campeões em tudo

Choquei ao ouvir as declarações de Thiago Neves, jogador do Fluminense, no Globo esporte. Inevitável lembrar o “Poema em linha reta” de Álvaro de Campos, aquela obra-prima de humanice que, em todos os sentidos, é grande demais para reproduzir-se inteira. Mas é célebre, e todos sabem que fala assim: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.//[...] Toda a gente que eu conheço e que fala comigo/ Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,/ Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...//[...] Arre, estou farto de semideuses!/ Onde é que há gente no mundo?”.

Pois deve haver gente em Thiago Neves, que, para meu assombro, chegou candidamente na entrevista e admitiu, sim, estou em má fase nos gramados. E não é por causa dos problemas físicos, não. Estou com dificuldades técnicas mesmo. Mas não quero atrapalhar ninguém; se começar a atrapalhar, eu saio.   

Não é que a pessoa, só para confirmar com exceção a regra de Campos, me saiu com esta? Não é que a criatura me chegou, em pleno horário de almoço, e lançou esse quase indigesto surto de humildade, tão liso, tão direto, tão visível, tão sem as curvas da desculpa que amacia, tão sem o agasalho das justificativas, tão consciente, tão sóbrio, tão livre do eu, tão em linha reta? Sei que parei com o bocado de comida no ar, estátua entre o garfo e a boca, atarantada com a falta de soberba acachapante. Ignoro como seja Thiago Neves em si, no íntimo de família e companheiros, no recesso de lazer e casa, e até em campo; a mim, entretanto, soou como um exemplo novo e feliz de campeão-em-tudo. Aquele que vence o que há de mais tinhoso: essa convicção de sermos ou algo formidável, ou nada. Aquele que vence a obsessão de perdoar a si próprio o que não perdoaria ao outro. Aquele que vence sua autodefesa hiperativa. Que se vence.

Porque a nossa mania é esta: atrasamos por culpa do metrô, que anda uma porcaria (nada a ver com o fato de termos saído de casa já com o relógio na marca do pênalti). Não rendemos tanto no último projeto por conta das desavenças na equipe. Esquecemos o aniversário do afilhado porque o Facebook deixa o aviso num cantinho tão ínfimo! Revelamos o segredo indevido porque carregá-lo sozinhos nos pôs em situação tão tétrica! Fomos reprovados no vestibular porque Joãozinho e Mariazita nos chamaram para padrinhos na cerimônia do dia anterior. Engolimos plurais e regências da língua materna porque moramos seis meses no exterior. Não falhamos: cedemos às naturais consequências dos fatos armados por outrem, pelo destino, pela Moira; somos perfeições incompreendidas, éticos de vocação, quando muito vítimas da incompetência alheia. Somos, em essência, príncipes na vida. E, por esse mesmo natural que temos, sujeitos a invejinhas e golpes de Estado – fazer o quê?

Caminhar em linha reta. De cara pro espelho, de frente pro mundo, portando a saudabilíssima vergonha que torna de carne os rostos de peroba. Que funciona como cura única para a moléstia autotransmissível de nos considerarmos melhores. De só nos vermos aproveitáveis quando perfeitos. De só nos liberarmos para o convívio social depois de maquiar os hematomas. Negar os hematomas. Negar as obviedades que nos caracterizam humanos.

Fiquemos fartos de semideuses. Em especial das Medusas que nos habitam – empedrando o que deveria, só e vivamente, pulsar.  

Nenhum comentário: