
Não sei o leitor, mas duas situações do Titanic (retratadas no filme de 1997, e provavelmente verdadeiras) me impressionam em especial. Uma é a imagem do casal de velhinhos consciente de que seria improvável conseguirem enfrentar o aguaceiro e arrumarem vaga em algum barquinho salvador. Ficaram então os dois na cama, abraçados entre si e abraçados à própria finitude, aceita com apreensão, claro (que não eram de ferro), mas também com a solidez das despedidas maduras. Eles se amavam, amavam com certeza o que andaram erguendo pelas décadas, e por isso não quiseram arriscar-se a morrer como dois depois de terem vivido feitos um; temeram acabar em horas diferentes o que haviam começado em uníssono. E esperaram. Coladamente. Mais um bilhete de viagem comprado em parceria. Quem não mentiu no altar, quem casou por dentro e por fora, quem não concebe o mundo castrado de seu amor de pouso, quem se veria despejado do planeta sem o outro coração que é seu endereço, entende. Faria talvez o mesmo. Não havendo a menor chance de flutuarem ambos, preferiria consolar-se na constatação de que ambos afundariam. Mas prosseguiriam como “ambos”, on and on. Inafundáveis.
O caso que mais me assombra, no entanto, é o dos famosos músicos. Os tais músicos do Titanic, que devem ter pressentido, também, quanto seria improvável a sobrevivência. E aí decidiram tacitamente permanecer ali, unidos e superiores no meio da confusão. Tocando. Tocando. Tocando. Fazendo o que faziam de melhor, abençoando com últimos pingos de beleza o horror inevitável, embalando em violinos a grosseria do pânico. É sobre-humano, quase, o ato de abdicar do instinto pelo senso extremo da delicadeza; abrir mão do medo – até do medo, fome tão primeira e tão autoprotetora – em nome do amor absurdo à própria missão. Não foram heróis de dar vida a ninguém; foram heróis de botar dignidade numa história de abandonos e negligências, heróis de deixar de ser uma qualquer-coisa para serem plenamente si mesmos, ao cúmulo. Heróis de largar uma promessa de morte pra lá e prosseguir on and on.
Inafundáveis.
2 comentários:
Os músicos, apaixonados pelo que escolheram fazer da vida, honraram a arte e suas vidas dando som a tanto desespero. Assim deve ser os verdadeiros artistas!
http://www.youtube.com/watch?v=yPLcZ5Rk3Lg
Uma sena muito marcante do filme
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