domingo, 29 de abril de 2012

Quarto e dependências

Não sei se leram hoje, na Revista dO Globo, a respeito do boom de janelas blindadas, quartos do pânico e semelhantes fofuras, em cidades bucólicas como Rio e São Paulo. Eu, carioca, entendo perfeitamente o auê. Muitos consideram exagero neurótico, gasto de quem não sabe mais onde entubar dinheiro, psicose que desvaloriza a imagem da Cidade Maravilhosa ante olhos turísticos – como se não carregássemos no lombo números comparáveis a um Iraque (comparáveis para pior, bem entendido). Como se opiniões docemente românticas pudessem vencer, no mano a mano, a crueza dos fatos. Ou reinventá-los a gosto do freguês. Mais ou menos como o maluquete que se recusa a usar guarda-chuva para negar a existência do toró. Acontecimentos berram por si, e que atire o primeiro colete à prova de balas quem não acondicionaria a própria família em estojinho forrado a veludo, como se maloca a joia preferida em ninho de segurança delicada (não que eu tenha alguma joia nesta vida, viu, senhor ladrão?). Eu acondicionaria. Tivesse eu grana pesada, e morasse em algum lugar ao rés do chão, mandava construir no mínimo um Castelo da Cinderela subterrâneo, impenetrável, antinuclear, e me fechava lá dentro por um mês com as criaturas mais próximas, desde que soasse qualquer alarmezinho suspeito. Com direito a alçapão-de-pegar-bandido. Podem ter alçapão, os quartos do pânico mudernos!

Loucura? loucura é ver seu lugar de nascença virar terra de Marlboro, com fé (que é o que nos vale), mas sem lei nem rei; e algum sonhador que more em Nova York ou Paris, suspire pelo Rio desenhado por Carlos Saldanha e queira trocar, que esteja à vontade. Rio de Janeiro é para tornar felizes os distraídos.

Mas o domingo de meio de feriadão anda por aí, não é hora de assuntos tão feitos de chumbo. O caso é que a reportagem da Revista me evocou um desejinho de infância: ter quarto – ou casa, ou mesmo escola – que abrigasse uma das coisas mais atiçantes do mundo. Passagens secretas! ah, que delícia imortal para crianças e adultos, as passagens secretas. Um guarda-roupa que, tudo bem, não fosse blindado nem chamasse a polícia 10 segundos após soado o alarme, porém abrisse para nossa própria Nárnia, lugarzito de brinquedo onde nos refugiássemos de palmadas, matemáticas, semanas de prova e carnavais. Uma biblioteca no colégio que surgisse ao toque de um botão portátil, um que você, só você levaria escondidinho no bolso – o oásis dos recreios vazios, das explanações inúteis. Uma escaaaaaada comprida como fileira de vogais (bem no chão do escritório!) que você, só você tivesse descoberto no dia da mudança e cobrisse malandramente com um tapetinho, para descê-la às 3h da matuta e desembarcar todo dia em seu navio corsário ou unicórnio de estimação. Qualquer local, qualquer portal, qualquer inviolável segredo. Qualquer escape que fosse de corpo e alma seu – só seu.

Tenho sim, confesso, dificuldade extrema de morar em situação prosaica para a qual não descubra alguma saída poética, alguma tangente, alguma porta de emergência, algum Pégaso selado e estacionado do lado de fora. Só permaneço em aula, palestra, trabalho se ali vejo também maneira de me evadir, normalmente escapulindo-me para dentro de um livro ou de rascunho pessoal que eu possa rabiscar à larga. Tenho a responsabilidade dos sãos, mas entro em dissociação com a fome, a sede e o desespero dos loucos; meu coração desengaiola-se e me abandona no poleiro. Some para o quarto do pânico. Só no amor não me evado, por já ser minha Nárnia. De resto, voo embora para Pasárgada, onde não há especiais favores para amigos de rei. Onde não há rei.

Esconder-se é preciso; é preciso guardar em algo ou alguém nossas rotas de fuga, deixar limpas e desobstruídas e fornidas e blindadas todas as possíveis (in)dependências. Ou morte.

Um comentário:

OGROLÂNDIA disse...

os quartos de pânico mais blindados e intransponíveis são os da alma e os da mente. esses a gente defende até com mina nuclear.
quando à violência, aqui em Ogroland não a temos tanto.
Aqui aposta-se alto em educação na infância e usa-se o código de Nabucodonosor na idade adulta.