sexta-feira, 4 de maio de 2012

Abandono de incapaz

Causou sensação a indenização de 200 mil reais conseguida por uma professora, esta semana, sob alegação de abandono afetivo por parte do pai. Pessoas argumentaram que grana alguma compensa os anos sem abraço de aniversário, sem ombro pra subir no show, sem mão na lateral da bicicleta, sem olhar demolidor pro namorado que vai levar à festa a garotinha. Concordo. Presença masculina pessoal e intransferível – daquelas que a gente sabe que são só nossas e não irão embora na primeira maré, no primeiro arrufo com Mãe – não tem preço. Excede muitão os trocados da pensão alimentícia e o nome frio, paradaço, digitado numa linha de documento. E passa pela autoestima mesma, porque pai é uma sedução: pai não é aquele que temos a priori, que é direito adquirido, usucapião por nove meses de assentamento. Mãe é nacionalidade; pai, no sentimento, ganha posto de dupla cidadania. Pai é um plus. Pai é o outro. É quem, aparentemente (ante o olhar raciocinante da criança), não tem a obrigação física de nos amar, mas nos ama. Não fizemos parte dele, mas nos ama. Não nos alimentou com sangue e leite, mas nos ama. Pai é descobrimento. Pai é grande navegação. Pai é conquista.

Por isso mesmo – pelo fato de concordar com a natureza incalculável da paternidade – é que aplaudo satisfeita a decisão dos tribunais. Não me contradigo. Concluo apenas o que foi concluído pela Justiça: tão imenso e imensurável é o vácuo emocional produzido pelo pai ausente, cruelmente ausente, que só colocando a coisa em vários dolorosos dígitos para que o sujeito comece a ter uma pálida ideia do rombo que deixou. Por pura comparação. Sabe esse numerozinho aí que você não sabe nem ler, sabe o estrago que esse troço vai fazer no orçamento dos próximos dez anos? pois é; não vai lhe doer nem a metade do que doeu, no filho, essa quantia vezes-o-infinito-vezes-dois de sua ausência. A questão não é de dinheiro, a questão é de linguagem. Idioma. A matemática do processo não concretiza, ao contrário: abstratiza de outra forma o sofrimento. Nesta babel psicológica em que vivemos, indenizações traduzem a agonia dos prejudicados para a língua dos indiferentes. Uma perda por uma perda. Um vazio por um vazio. É a lei de Talião evoluída, civilizada, sem derramamentos indevidos de olhos e dentes.

Porque não se busca, em verdade, compensação possível; não está o foco no benefício financeiro do abandonado, mas no puxão de orelha aplicado ao abandonante. É balde de água fria de abrir olhos, acorda, espia. Meça em sua própria régua de aflição o efeito da falsa orfandade sobre quem era (ainda é) incapaz de se perceber como digno do amor do outro – um outro que não nos pertence de fábrica, que só por insistência atingimos. Imagine as consequências da falta de amparo masculino sobre quem era (ainda é) incapaz de pisar seguro(a) nesse território, como o rapaz que confunde macheza com violência ou distância, como a moça que enxerga em cada homem um carimbo de aprovação a ser conseguido. Reflita, por meio desse esvaziamento simbólico do bolso, sobre o resultado da cadeira vaga na apresentação da escola, do lugar desocupado na ceia, do espaço em branco na foto de parabéns, para quem era (ainda é) incapaz de justificá-los. O caso, enfim – pisemos e repisemos o assunto –, não é de cobrança de amor, que nasce espontâneo, e sim de dívida de presença e apoio, que são coisa escolhida e consciente. Pois que não surgimos no mundo a bordo de nenhum cometa, e não à toa fomos confiados ao braço de tutores. É porque a gente era incapaz de dar download na cultura do planeta, incapaz de entender os meninos que tão tolamente agiam, incapaz de tirar as rodinhas da bike sem pronta e atenta retaguarda, incapaz de medir o próprio charme e doçura sem quem nos considerasse irresistíveis. A gente era incapaz de se autoeducar, automotivar, automedicar, autoalimentar se alguém não nos guiasse muito (ou moderadamente) perto. Era incapaz de se levar pela mão. De se sarar febre. De se sarar desgosto. De se consolar. De se conchegar. De se criar.

Ainda é.

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