domingo, 27 de maio de 2012

Professores de nada

Outra de Affonso Romano, novamente do livrito Tempo de delicadeza (o título não poderia ser mais próprio). Transcrevo uma historinha adorável da crônica “Pra que serve a filosofia?”: “[...] um amigo me contou que, quando estava no colégio, um novo professor entrou na sala e lhes disse: ‘Quero lhes dizer que sou professor de filosofia. E que a filosofia não serve para nada’. Os alunos estavam ainda boquiabertos com a franqueza do mestre, quando ele agregou: ‘Agora me deem cinquenta minutos, que vou lhes explicar o que é o nada’.

‘Ao fim da aula’, disse-me o amigo, ‘minha vida estava decidida: eu ia ser professor de nada, ia ser filósofo’. [...] Os imaturos tendem a se deixar seduzir pelo ‘tudo’, que é a aparência, quando é pelo ‘nada’ que se deve essencializar a vida.”

Não só concordo inteiramente com essa lindeza de pensamento como me proponho a dividir profissão com o camarada do escritor. De uma ou outra forma, não nascemos todos potenciais ensinadores de nada? o nada que preenche nossas entrelinhas, o nada sobre o qual cismamos entre o pagamento de uma conta e a seguinte, o nada que nos aflige de morte quando alguém pergunta o que estamos sentindo e nós a custo dizemos: nada. O nada de quem fingimos não ser íntimos, como as amizades que nos embaraçam. O nada que nos invade nas horas mais impróprias, que nos atrapalha assistir à novela, que nos interrompe durante a escrita do relatório, o nada que não cala e nos arranca do que convencionamos ser para nos esfregar no nariz o que somos. O nada que sufocamos com o travesseiro depois de ver a matéria sobre corrupção no Fantástico. O nada que amortecemos com a vitrine após esbarrar visualmente no minivendedor de bala. O tudo-nada que trocamos de roupa e nome com o nada-tudo, que substituímos pelas “urgências” palpáveis menos custosas, que escondemos no fundo do armário para exibir ninharias, mas que (malgrado nosso) conservamos imortal, indeletável, indelével. Somos potenciais ensinadores de nada porque não há matéria que transbordemos mais orgânica, embora renegada. Somos potenciais ensinadores de nada; antes, porém, urge nos atualizarmos modestamente como uns seus aprendizes.

Urge relembrarmos o nada, ou a naturalidade do nada – aquela sem-vergonhice com que, na infância, “perdíamos” tempo namorando geografias de nuvem, brilhices de riacho, poeira dançando no sol, arco-íris guardado em bolha de sabão. Aquele despudor safado com que nos despressionávamos do necessário para meditar o supérfluo, e nos ocupávamos em querer saber o que todos haviam combinado de achar que já sabiam, e mergulhávamos em pequenas brechas não explicadas para intimidar adultos sempre ocupados demais com o tudo. Por que as pessoas se casam com uma pessoa, se gostam de outra? Por que as pessoas ficam sozinhas contra a vontade? são más? estão de castigo? Por que as pessoas votam nos políticos que não resolvem nada? Por que as pessoas têm filhos para depois fazer maldade com eles? – na meninice d’alma, na limpeza de vista com a qual nascemos, enxergávamos como óbvio o nada que o cansaço medroso acaba fantasiando de mistério. “É complicado”, suspiram os adultos que permanecem na mesma ignorância antiga da resposta, se bem que agora convencidos de terem mais o que fazer. Há tudos suficientes para acobertar covardias sob álibis numéricos.

O nada é a arte, o nada é a filosofia, o nada é a ternura, o nada é a generosidade gratuita, o interesse desencaixotado, a atenção liberta de porquês. O nada é a fartura escorregadia da metáfora, o nada é a milésima visita apaixonada ao Jardim Botânico, o nada é a festa do pijama, é o piquenique, é o acampamento na sala. O nada desliza entre as rotinas escudeiras e nos acerta no peito cedo ou tarde; são os fantasmas dos horrores ou doçuras que não vemos, que soam inadequadamente abstratos e amorfos, e que vão cobrar pedágio de nossas desfeitas jogando-nos na chaise do psiquiatra. O nada nos exige ouvintes. O nada nos quer alunos.

O nada é bacharelado que nos permite crescimento apesar da profissão.

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