quarta-feira, 16 de maio de 2012

Me dê motivo

Muitos já ouviram falar em Mariana Alcoforado, a jovem portuguesa que se apaixonou doidamente por um oficial francês enquanto estava no convento, e desembestou a escrever-lhe cartas choradíssimas depois de ele ter retornado a suas atividades militares. As tais cartas vieram à luz (anônimas) em 1669, poucas mas longas, de amor rasgado, cortante, rastejante. Não é texto de quem mata saudades de namoro por escrito, e sim agulhadas da paixão que se sabe mal paga e mastiga uma delícia feroz em apresentar os próprios tormentos. Um quê de Julieta, um quê de Medeia; de donzela saudosa e de amante desprezada – o feminino em si mesmo.

Impressionou-me um trecho em especial, no qual Mariana solicita motivação para sair de sua tristeza constante, monótona, e ceder enfim ao último desespero: “Seja mais difícil de contentar! Ordene que eu morra de amor por você!”. E aí não há mais o apenas feminino, mas o demasiadamente humano, se concordarmos em sublimar o apaixonado das palavras e aplicá-lo a toda situação de desgosto passivo. Porque é isso que queremos: dificuldade. Dificuldade que nos arranque de nosso marasmo infeliz e nos ponha fogo de iniciativa. Dificuldade não pequenina, pelo menos não quando já há milhas de amargura acumulada; obstáculo, sim, daqueles tremendos, cabeludos, de nos encostar na parede, de nos dar ultimato, de nos sacolejar com a adrenalina das emergências, com a pressão dos instintos. Queremos a gota d’água que venha de turbilhão. Queremos a desilusão que venha de enchente. A provação que não permita desculpas, que não se deixe empurrar com a barriga, que nos atropele, que nos arrebate, que nos meta um dá-ou-desce. Se depender de nós, daqui não saímos, daqui ninguém nos tira. Então vá lá. Nos cuspa. Nos espanque. Nos dê na cara. Nos dê motivo.   

O trabalho anda aquela safra de humilhações cotidianas, de mortezinhas lentas; porém as danadas são sutis, espaçadas, e quem olha de fora nos atribui um empregão – aumentando-nos o sofrimento com um veneno de culpa. Precisamos de quê? de um bruto dum motivo. Coisa tonitruante, que afinal anule salário obeso, benefícios generosos e esses demais mimos que nos subornam a felicidade. Precisamos de falcatruas para alegar violência de nossos princípios; precisamos de chefe assediando, para sacar do baú nossa incontestável decência; precisamos de colega ou aluno nos dando paulada, para precipitar nosso ato final. É bem-vindo todo problema cuja grandeza exceda a serenidade dos conselheiros. Cujo volume assuste a pachorra da opinião pública.      

A relação vem estando uma fonte muda de despedidas, um canteiro de maus silêncios, uma plantação de desrespeitos ferinos, campo minado de crueldades transparentes. Todos continuam, entretanto, perguntando pelo futuro casório, invejando a união antiga como patrimônio do Iphan. Precisa-se de quê? motivo. Motivo que nos autorize o fetiche da fuga instantânea, daquelas que nem tempo têm de deixar o armário vazio. A crise de fúria do outro, o ciúme assassino, a traição flagrante; a ameaça à família; o cárcere privado. Motivo – visível a todos os olhos, sujeito a todas as piedades, todos os apoios diante de nossos rompantes de liberdade. Motivo tão gigante que não nos traga críticas. Tão certeiro que não nos gere cobranças. Dogmático. Absoluto.

Que para isso alguns grandes males são feitos: devolver-nos ao mercado de bens.

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