sábado, 26 de maio de 2012

Bodas de página

Faço hoje seis meses de casada. Brinquei com minha irmã que, por ser metade das bodas de papel, dava bodas de página. Por enquanto é só um lado da história. Mas é aquilo: se não se conhece um livro pela capa, pela página de abertura já se suspeita como há de se desenrolar a narrativa, ou ao menos se o estilo é de agrado e aconchego. Pois motivos tenho, nessa leitura inaugural, de crer que será livro sempre de cabeceira, daqueles que tanto se reencontram com a mesma e renovada ânsia, que tanto se acompanham com a mesma respiração feliz e suspensa, quanto se saboreiam com o vagaroso cuidado do doce preferido – esse apertume no peito que vem na consciência da finitude. Casamento perfeito, como o livro perfeito, só não é melhor porque não somos fisicamente eternos. Porque somos suporte quebrável, página rasgável de enredo dez mil vezes mais infinito.

Na primeira lauda do casamento se aprende o seguinte. Que todo pró e contra previamente divulgado aplica-se com exclusividade à união alheia, já que cada marido ou esposa é universo próprio, e sobretudo: cada encaixe de marido e esposa é exato e intransferível. Há as parecenças, sim, que afinal não existe quem não tenha roupa a lavar, conta a pagar, comida a fazer. Mas as particularidades. As particularidades! Aquele comodismo em que o Fulano da Prima tanto peca, sabe? na sua dimensão, inexiste. Aquela irritante possessividade do Sicrano da Vizinha, já reparou? é queixa que nunca lhe ocorreu. Da mesma forma, seu lindíssimo não suspeita (em vida não chegará a suspeitar) o que seja calcinha pendurada no chuveiro ou sapato de grife comprado em oitenta vezes no cartão. Pois olhe só que coincidência: o que você e ele de todo desconhecem agora, também desconheciam de todo na época do namoro. “Mas Beltranílson mudou, ele não era assim”, choraminga a distraída. Era, filhinha. Era. Você que não empregou tempo e olhos bastantes para desconfiar do germe talvez tímido, talvez mascarado, porém presente. Espia a semente da agressão ali, indiscutível, sob a cena “romântica” de ciúme. Vê só a droga financeira que fatalmente daria aquela mania “romântica” de andar repleto de sonho e vazio de projeto. Estava ali, querida. O marido dentro do noivo e do namorado, fruta na casca; você não viu, não quis ver ou não observou em si mesma qual o nível de perdão para qual defeitinho, qual a potencial aceitação para qual singularidade. Que casamento, menina, não é junção de duas empolgações e dois deslumbramentos – é contrato maduro, amoroso, de duas tolerâncias. 

Por extensão, o que também se aprende nesse primeiro instante da vida conjugal é que podemos virar o que só de leve desconfiávamos já ser. Achei que faria um sincero esforço de adaptação, e carregava em mim uma esposa de longa data. Achei que a excessiva convivência pudesse assustar meu apego aos intervalos de solidão, e as saudades da convivência passaram a ser triplamente maiores. Achei que nun-qui-nha cataria com minúcias a cabeleira colada ao pano de chão, ou deixaria de considerar o mundo dos temperos uma cabala, ou chegaria a comprar com naturalidade os queijos que odeio – e o faço como quem nunca pensou em fazer outra coisa (aliás, deixa eu esfregar com mais contundência esses vasos sanitários). A gente não muda no casamento: finalmente se percebe. Deixa vir à tona, sob carinhosas ou apertantes necessidades, o talento ou costume incubado – aquele que não assumíamos por preguiça de atualizar o perfil. Casamento somos nós em regime de emergência. É a adultice imediata. Urgente.

Só não é loteria. É antes a colheita do tesouro demoradamente cavado. O juro do depósito disciplinadamente recolhido. O lucro da poupança esforçadamente guardada.

No meu extrato, tudíssimo azul.

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