quinta-feira, 31 de maio de 2012

Mais um sonho impossível

“Até morrer estarei enamorada/ de coisas impossíveis” – com esses versos tão maciamente precisos é que Cecília Meireles inaugura o poema “Eternidade inútil”. Tenho a mesma fratura exposta. Sensata eu sou para consumo externo, para as imediatices necessárias: duas matrículas de funcionária pública, decoração de casa pensada para não absorver digitais ou piores manchas, impossibilidade crônica de faltar ao trabalho (como, antes, ao colégio) sem ser por urgência de morte, caderneta de poupança rendendo classe-mediamente. Não solicito cartão de crédito para não me ver engolida nas seduções, não bato de frente com tijolo na mão para não queimar relações e navios. Não sou dada a renúncias intempestivas de nada seriamente enraizado ou financeiramente essencial. Não me demoro em utopias pedagógicas que pintem os fatos de arco-íris. Sou, enfim, a pessoa de regular praticidade, a operária de economia estável, poucas ilusões aparentes e pouquíssimas imprudências.

Mas, ai de mim, até morrer estarei enamorada de coisas impossíveis.

Até morrer duvidarei de minhas tantas desilusões. Continuarei prevendo, com o canto d’alma (e não soluciono o duplo sentido desse “canto”), a brisa que varrerá a definitiva inconsertabilidade do país. Prosseguirei amando com paixão explícita a ideia de me teletransportar para um fim de semana em Montmartre, na Abbey Road, no Magic Kingdom. Insistirei em suspirar os delírios de Werther sem aprovar nem crer o amor que se mata. Teimarei em sonhar com a loteria e a liberdade, em não descartar mentalmente o arroubo e o adeus ao trabalho batendo portas, em não permitir que o coração desista de ser best-seller, em não mergulhar no ceticismo irrevogável dos infelizes, no cimento emocional dos que só não morreram por falta de carimbo. Serei tinhosa na persistência de querer, ou, se não admissivelmente querer, de fantasiar; de projetar fetiches financeiros e sociais, mascar pastilhas diárias de loucura e sorrisos absurdos a esperas que (garante a sensatez) podem ser eternas. Até morrer estarei condenada a não pousar com inteireza no chão, a erguer nem que sejam os olhos. Estarei encarcerada em minhas celas feitinhas de suspiro, em minhas nefelibatices escondidas entre fogão e tanque, em meus futuros múltiplos, em minhas vontades cordeiras disfarçadas de lobo. Até morrer estarei solta demais de mim mesma. Sequestrada, sem possível grito nem choro, de meu próprio e tão fixo jeito de estar.

Eu, de tão sólida, desmancho no ar.

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