quarta-feira, 23 de maio de 2012

Não há chá possível

“Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências”, escreveu Machado em seu conto “D. Paula”, mais um dos lapidares. A D. Paula em questão é tia já idosa de Venancinha, e revive um namoro do passado tomando de empréstimo as emoções da outra, que anda flertando (indevidamente) com o filho do mesmo galã da tia. Para vampirizar um pouco dos ardores moços, D. Paula leva a sobrinha a contar-lhe “tudo, tudo”, nos detalhes mais intensos de suas ingenuidades, descobertas e angústias. Finalmente Venancinha termina a narrativa, ganha os necessários conselhos da parente sensatíssima e cedo se recolhe aos aposentos, tão logo baixa a febre do relato, tão logo se contrai a explosão, o choro, a catarse, a nudez emocional. Não há chá da tarde possível; não há ato prosaico que se encaixe na entressafra da imensa exposição pessoal – sobretudo o ato prosaico que implica interação. Não existe abrigo para a ressaca íntima que não esteja no silêncio da solidão provisória.

Vejamos. Você desarrolhou um “eu te amo” que andava envelhecido e sagrado na adega, quase mito, deitado à espera do momento propício, da ocasião precisa. Eis que apareceu a ocasião precisa, no susto, sem levantamento prévio de luz nem de música. Você é que não percebeu a preparação por imaginá-la mais solene, mas não mais que de repente houve um repente, as nuvens se uniram para dar clima, o ar ficou denso como o das chuvas dezembrinas e você lançou, lançou tudo, pronto. Já que resolveu desengasgar, desceu ao último gole; fartou-se de se mostrar inteiro, as tantas esperanças construídas, os inúmeros detalhes que em voz alta surgem ridículos, a adrenalina tremendo a mão num gozo masoquista de réu confesso. Está feito. E, mesmo que o que venha depois seja uma resposta de paraíso, essa igual adrenalina permanecerá no sangue, fechando a glote para qualquer chá suposto. Dizem que é a felicidade; eu digo se tratar da ressaca de confidências. O efeito é mais visível nas respostas mudas ou negativas: a tristeza escancara a vergonha que o contentamento disfarça. Ademais, o amor correspondido tem por consequência uma celebração em dupla, e então o declarante “engole” o nervosismo que só na solidão digeriria. Mas em nenhuma das situações – desolação ou alegria extrema – existe uma rápida recuperação da capacidade de almoçar ou jantar. Ir ao banheiro, só em último caso. Fica-se preso na mesma nuvem poética, não importa se rosadinha ou cinza.

Ou então você se meteu numa briga. Não das físicas, mas daquelas que vão esquentando verbalmente e puxam uma enfiada de ressentimentos nunca suspeitados, de acusações jamais cogitadas. Toda a mágoa non grata, que você disse ter jogado fora há tempos e se sente embaraçado de guardar, é capturada na enchente e vem à tona. Maçada. Não era para você se denunciar assim, para entregar o ouro de quanto deu valor ao agradecimento não feito, ao muxoxo feito na hora errada, ao presente comprado no número absurdo, ao comentário absurdo ou privado solto em ambiente indevido. Não era, mas já foi. Que droga. Vem aí a péssima fase da culpa de ter falado, de ter injustamente esfregado na cara – porém, acima de tudo, da culpa de se ter mostrado tal qual era, sem as maquiagens cuidadosas que sempre esconderam o caldeirão de chateações primárias, infantis; os aborrecimentos inexplicáveis, as infinitas carências. Resolver como? se avestruzando. Um tempo no buraco, pausa no trabalho, cobertor e Sessão da tarde desmiolada, para oferecer chance de cicatrização (e elaboração de desculpas) numa calma que não se dá com os chamados da rotina.

Bicho raro é o autoperdão que venha ligeiro como se toca o sininho. De bandeja.

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