terça-feira, 15 de maio de 2012

Tratamento de canal

Concordei com o Fábio: daria um ótimo tema de crônica.

Vamos ao caso. Posicionei o controle da TV sobre o 55, número do bom e velho Discovery Home & Health, que há tempos não frequentava. Volta e meia pilho algumas estreias, três ou quatro novidades na programação; nada que deixe o Home muito mais excitante, nem exageradamente congelado. O normal. Só um detalhe causa desespero: os comerciais quase todos, apesar do gordo período transcorrido sem a gente aparecer naquelas plagas, são os mesmos. Os meeeeeeeesmos! do tipo que sabemos recitar em qualquer sabatina, decoradíssimos já faz mais de um ano. Inclino-me a pensar que já faz dois. Não fosse o bastante, os anúncios passam de arrastão, 98% das vezes na mesma ordem. Nem sequer há o consolo do súbito, do imponderável: lá vêm eles de enfiada, o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, idêntico texto e diálogo; todo intervalo eles fazem sempre igual – não nos sacodem em nenhuma hora da manhã, antes nos hipnotizam com seus quase dez minutos de tortura previsível.

“Se a pessoa fica o tempo inteiro nesse mesmo canal, enlouquece”, comentou o Fábio com chateação inevitável. “Mas não é assim em tudo na vida?”, completou, sugerindo numa piscadinha de olho que o assunto era perfeito para uma postagem seguinte.

É perfeito o assunto, e é assim em tudo na vida. Uma criatura acaba insana de pai e mãe se não dá umas trocadinhas básicas de canal, por mais apegada que seja à programação de costume – ou bem por isso mesmo. Não digo, evidentemente, que se fique virando casaca e alternando o inalternável: time, amor, princípio, religião. Longe de mim, tão amiga sou da fidelidade no matter what. Falo dos afetos acessórios; aqueles que formam o citoplasma de nosso núcleo, o invólucro de nosso eixo, a massa de nosso recheio. Falo das paixõezinhas intelectuais, dos lazeres, dos prazeres, das manias, das insistências, de tudo que caiba no rótulo neutro e secundário dos “interesses”. Uma escorregadela de teimosia e o vago “interesse” – que é mero preenchedor de tempo entre nossas devoções maiores – passa a merecer carimbo de obsessão. Da obsessão à maluquice, um pulo. Um sopro. Pertinho assim.

A adolescente que almoça-janta-transpira-respira-estuda-dorme um ídolo. Os cartazes do ídolo, a voz do ídolo, a agenda do ídolo. Muito fofo, muito bonitinho se a guria continua sintonizando no canal da família, dos amigos, da escola, do clube, do esporte, do inglês, do balé, da novela, da paquerice. Mas se a coisa começa a resvalar para a repetição maníaca, a ponto de sono e fome, céu e terra migrarem para os olhos do ser adorado, e tudo o mais se esfarelar em perda de tempo inimiga... sirene na área. S.O.S, desintoxicação – antes que a linda se consuma numa anorexia de mundo. Da mesma forma o sujeito que não termina um pipi sem que lhe toque o celular trazendo novíssimas, urgentíssimas, emergencialíssimas do escritório. Sai do escritório, mas o escritório não sai dele. Devora-lhe a aorta, necrosa-lhe um ventrículo, azeda-lhe a festa do caçula, rouba-lhe o passeio de barco com a turma, insinua-se na mesa de domingo ou no amorzinho de feriado. Controle remoto no indivíduo! – antes que termine um 24 de dezembro em papo amargo e solitário com o fantasma dos Natais futuros.     

Assim também o fumante, afundado no canal de conversações eróticas com dona morte. O misantropo, afogado na antipatia de só ver delícias no Animal Planet. O hipocondríaco, atordoado até o extremo com as ameaças de tantos Enigmas da medicina. A mocinha infeliz para sempre porque, 25 horas por dia linkada no closet das celebridades, já está convicta de ela própria ser um lixo fashion. O rapaz órfão de notas (sim, nos dois sentidos) porque foi abduzido pelo joystick. A mãe vazia de filhos porque há anos se transformou em horóscopo de só prever desgraça. Assim os viciados, os fissurados, os possuídos por qualquer temática imutável, por qualquer cisma tirana que os torne um tédio ou um perigo. É necessário – é estupidamente necessário – desviar-se para focar. Reeducar-se para saber. Tirar o volante da reta obsessiva para não bater.

Trocar o chip é levar desfibrilador na vida.

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