segunda-feira, 21 de maio de 2012

Perfume

Entre as amofinações todas do resfriado, há uma suprema. Não, não exatamente a coriza – embora seja de um aborrecimento atroz parecer a rena do nariz vermelho e ver o lenço virando anexo do braço, na tentativa úmida e vã de conter a torneirinha –; não exatamente a coriza, porque esta sempre tem seus sprays de auxílio e não costuma durar mais que um dia e meio. Pior que a escorrice é o efeito dela, e das milhões de assoadas que violentam a incham o nariz: a perda temporária do olfato. Como irrita! Nem pelo olfato em si, e sim pelo paladar que voa com ele janela afora. Poucas anestesias me atormentam como essa cegueira gastronômica.

Porque sou gulosa. Não gulosa da quantidade de alimento; tenho gula do gosto dele. Seja qual seja, alface ou ovo de Páscoa. Tenho gula do gosto, volúpia da textura, da temperatura, do cheiro; devoro por inteiro, mergulhando na suculência (delicada, lentamente) de corpo, alma e sentidos (todos). Imagine o tédio de uma pessoa assim – como direi? sinestésica – comendo e bebendo sem o prazer mais imediato de comer e beber. Dou de assoar-me, louca da vida, pra ver se reabro uma via qualquer de olfato, se arranjo algum ponto de respiração por onde penetrem as boas qualidades do quitute. Que não me contento com os sabores gerais, não; não basta saber se é adequadamente doce ou salgado, se é vagamente cream-cracker ou maçã. Quero as impressões mais sutis, mais específicas, cada nuance das semelhanças, cada desvio do neutro. E quero as inflexões pequeninas do amaciante nas toalhas, no lençol, o limão discreto do detergente, a falta ou exagero de perfume na hora de sair. Gosto tanto das entrelinhas, gosto tanto dos tons que moram no paladar e no cheiro, gosto tanto de todo o cardápio do ar!

Assim em tudo: não sou chegada à insipidez, à vida incolor e inodora. Não suporto (mais) o estudo demasiadamente árido (gastei na escola, e em algumas filologias da faculdade, toda a capacidade estocada); não tenho alma e ânimo para trabalho em que não possa deitar uma tal e qual pitada de açúcar, dois dedinhos de literatura, pelo menos alguns gramas de espírito. Desde os cinco anos que sou persona non grata entre os números; sou analfabeta funcional em pedagogês, demagogês e academês, tapada para legislações e inepta para revisões (a não ser que me queiram pulando da Rio-Niterói antes da vigésima página). Não gosto de look monocromático, não curto uniforme, não trabalharia de farda. Sou esquiva, inquieta, amo a variedade na delicadeza, as flores, as cores, um ligeiro caos, o pequeno caos inerente às opções. Preciso comer e viver colorido. Não com os sabores agressivos do camarão e da azeitona (eca), nem com os viveres agressivos das baladas noturnas e dos esportes radicais. Mas com as borrifadinhas de gosto, de alegria; com a suavidade dos temperos, das miniaventuras; com a sutileza das especiarias e novidades. Deixar de sentir um só sabor, de um só caqui ou fatia de pão, é uma provisória morte. Deixar de ver poema num só dia é inconcebível gripe.

Que me seja incurável a síndrome de aspirar.

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