quinta-feira, 24 de maio de 2012

Em boca fechada

“Fale sobre o problema, que isso vai te ajudar”, dizem lugar-comumente os amigos de boa vontade. Comigo essa máxima teve sempre validade mínima. Em termos. Se o negócio se encaixa na categoria do que irrita superficialmente, se faz você bufar na hora mas não se prolonga nem se entranha – um caixa eletrônico eternamente quebrado, uma discussão irrelevante de pontos de vista –, não há motivação para digerir em silêncio; ao contrário: o aborrecimento ainda fornece mote de caudaloso assunto. Inclusive assunto fático, de elevador (que útil é sacar um tema da manga nessas horas!). Se, no entanto, a coisa é da ordem do que machuca no mais enraizado, do que rasga na origem, do que sangra, só consigo sobreviver ao contínuo desespero sem verbalizá-lo.

É o melhor meio de alimentá-lo crescente e incurável? para alguns, talvez. Há pessoas que acham alívio em revolver a inflamação, espezinhar o trauma, pisá-lo e repisá-lo à luz do dia, e enfim o vencem à força de torná-lo excessivamente iluminado, batido, comum. Admiro os que têm essa valentia. Eu, porém, funciono de revés: preciso curar-me à sombra. Na impossibilidade do remédio ideal (extirpar de vez o núcleo adoentado), que pelo menos a fissura siga medianamente cicatrizada, sem hemorragias. Qualquer toque, qualquer catucão é tão medicinal quanto trazer a úlcera do estômago para a pele, ou tentar congelar o vulcão pondo para borbotar o rio de lava que destruirá o entorno.

O trabalho, por exemplo – minha ferida que não cria casca. Uma vez que não visualizo alternativa próxima, e preciso continuar engolindo esse batráquio por mais algum tempo, tudo que mais me angustia e atrapalha é conversar sobre escola. O desrespeito crônico em sala, o desinteresse doentio de estudantes, o papaizismo nojento do governo, as políticas cegas e burras que tornam o professor boi de cangalha e boi de piranha, o pedagogês florido dos que analisam a escola de dentro de um gabinete ar-condicionado em Harvard – é pensar ou tagarelar a respeito de um qualquer desses temas e me sinto ferver o sangue. Correm raiva e indignação nas veias; tão muitas, tão envenenantes, que calar se torna a opção mais razoável de sobrevida. Falar é repetir o horror multiplicadas vezes. Falar é retrazer a consciência da selva em que estou enfiada. Então não falo. Não coloco em verbo essa dor sem substantivo. Ou o faço muito por alto, ou muito breve, ou com foco exclusivo nas poucas melhores coisas. E permaneço trabalhando assim; sorriso ensaiado no rosto, força persistente no giz dando viabilidade à confusão interior, como um Hulk contido sob toneladas de serenidade não-verbal.

Há também os que só elaboram a morte sem conversas nem lembranças partilhadas, a não ser quando a cicatriz já se completou. Há os que solucionam melhor as crises de casal sem DRs nem terapeutas, apenas no gestual cúmplice e sintético dos corações parceiros. Há os que morrem por dentro se mencionam, ou se alguém lhes menciona o amor não correspondido, e prosseguem em caminho quase feliz se não há dedo que lhes provoque o sangramento. Há dores de todo feitio, que se fecham ou matraqueiam; que hibernam ou desabafam; que fazem casulo ou se derramam em diálogo. E há, sobretudo, que respeitar a doçura das diferenças e a eficácia das diversas medicinas, como nutrição que se planeja para organismos distintos.

Mesmo para este em que habito, que só chega a assumir que é dor a dor que deveras não sente.

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