domingo, 13 de maio de 2012

O quarto do filho

Uma conhecida elogiou no Facebook o comercial da Pampers para o Dia das Mães, transmitido no intervalo do Fantástico. Linkou o anúncio em sua página e eu fui conferir. Realmente lindíssimo, com a genialidade das ideias simples; mostra “tipos” de filhos/ famílias em sequência e arremata declarando que todo bebê, sejam quais sejam as características, é um pequeno milagre. Não há discordância possível. Existindo vida – quer ela pertença a únicos, gêmeos ou quadrimúltiplos, balofos ou prematuros, exigentes ou não de necessidades especiais –, existe milagre a priori. Existe milagre em duas células virarem músicos, bailarinas, mecânicos, presidentes; existe milagre em triunfarem sobre vírus, bactérias, saudades, vestibulares, bullyings, amores perdidos, casamentos desfeitos. Existe milagre inegável, irrecusável, indecifrável nessa teimosia de vida, autorreciclada para além de Vietnãs, Idades Médias, bombas atômicas, pestes bubônicas. Existe milagre em que as mães não desistam de embebezar-se, apesar dos noticiários. Apesar do mundo.

Mas grande parte dessa persistência é devida à esperança, mesma, da vida sobre a vida; essa confiança que têm os genes de um dia prosseguirem em outros genes, essa força abissal e primitiva da descendência. Por isso, exatamente, eu tendo a enxergar ainda maior milagre em outras mães: as que já não veem nem tocam os filhos, e nunca mais os tocarão nem verão, e nunca mais os terão nos braços como promessa viva de mais vida, símbolo de continuidade, motor de perseverança. Se já é às vezes tão árido seguir viagem com o guri ali na sala, sem querer saber de estudar ou de comer legume; se já é tão heroico não desistir ao ser a única a visitar o rapazote em Bangu I, ou a reencontrar a mocinha na clínica de reeducação alimentar em que foi internada à força; se já é tão angelical abrir mão dos próprios desânimos diante de uma esperança ainda respirante, palpável, concreta – como imaginar que se possa, senão por milagre, continuar multiplicando vida depois de se ter o filho (que era apólice de vida) morto nos braços? Por que artes a mãe se rearranja? Em que caminhos a mãe se reencontra?

Pois entra aí a seiva obsessiva de vida que migra de amor em amor, indestrutível, como a energia de Lavoisier. Sabe mãe-pinguim que fica órfã do pinguinzinho e instintivamente busca outro filhote para aconchegar nas penas, grávidas de cuidados? É tal qual. Uma vez nascida (por dentro), a mãe não se extingue; perdido seu bebê original, derrama-se por onde quer que haja vagas e bebês, por onde existir carência de abraço e leite, de colo e vigília. Sobrevivem assim as mães dos Cazuzas, das Candelárias, dos Realengos, das Columbines, as mães das filhas atingidas por bala no metrô ou por jet ski no mar, as mães das atrizes assassinadas num canteiro ou das adolescentes caídas num parque de diversões: sobrevivem amando. Retirando com bomba, do peito doído, os litros de amor acumulado e viúvo – e destinando-o às campanhas, aos sobrinhos, aos afilhados, às adoções, às instituições. O mundo mata o filho; mas não mata o que nasceu, gêmeo e contemporâneo deste, na mãe. Não mata a maternidade. Cria apenas o vazio que não recebe nome de viuvez nem de orfandade, nem de coisa alguma, porque não permanece vazio: a seu tempo se completa novamente da mesma febre doadora que transborda.

Disse Chico que a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Seja. Porém mãe não acaba nesse revés de parto. Ali na cama ou no berço de sua metade amputada, já tinha anteriormente dado à luz a si mesma.

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