sábado, 5 de maio de 2012

Inculta e bela

Hoje é Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Com a cultura não estou querendo papo agora; quero com a tal que Bilac chamou tão lindamente de última flor do Lácio, tão acertadamente de bela, tão injustamente de inculta. Inculta, a língua portuguesa – só se for no sentido de flor que nasceu espontânea, sem o cultivo proposital das hortas, dos jardins palacianos, das orquídeas de estufa. Neste caso, são incultas as línguas todas; todas as que brotam de determinada cepa e evoluem, evoluem livres como cabritinhas, sem nenhuma semeadura inicial nem controle posterior de laboratório. Todas as que se conhecem, idiomas ou dialetos, como línguas maternas. As que soam fáceis ao ouvido e vêm rápidas à boca, as que usamos para gemer ou xingar, as que viram carne, as que viram sangue, as que viram parte; as arraigadas. Línguas cultivadas, só alguns malogrados esperantos ou idiomas ficcionais, como o elvish de Tolkien. Plantadas, adubadas, acompanhadas e colhidas. Porque as demais, que embalam infâncias e vidas afora, têm toda a maravilhosa selvageria das florestas – sua bruteza, suas delicadices, suas areias movediças e seus orvalhos –, não a previsibilidade dos canteiros. Todas esplendor e sepultura. Todas rudes e dolorosas. Todas incultas. Todas belas.

Mas tenho necessidade de considerar a portuguesa a mais bela de todas. Não deve ter essa sensação quem cresceu falando alemão, por exemplo, ou italiano ou russo, porque conhece os meandros da gramática de origem e suas brechas; parece-me, no entanto, que há algo de fixo em algumas outras estruturas, especialmente as de fonte não latina, e não as invejo. Não encontro no inglês, por exemplo, o mesmo índice de brincabilidade. Aqui no português fazemos verdadeiro kama-sutra com sujeitos e seus predicados, jogamos lá e cá os adjuntos, posicionamos conforme nos apraz os adjetivos, pinguepongueamos a nosso gosto os advérbios. É uma esplendorosa pouca-vergonha. Sabe-se lá se a sintaxe do português é que é tão malandra e malemolente quanto os quebrares de seus principais falantes, ou se sua própria condição de rica em possibilidades nos moldou à sua imagem e semelhança. Sei que não nos imagino sendo usuários, digamos, do disciplinado japonês ou do finlandês rascante; nem do inglês com seus poucos pronomes e plurais, e nenhuns acentos (onde a beleza do “andara” e do “andará”? do “cáqui” e do “caqui”?), nem do francês com sua acentuação hiperativa – porque a gente só tem tempo de errar umas poucas regras. O português (notadamente o brasileiro, tão mais lento, aberto, vocálico e morno) nos veste à conta, como roupa de alfaiate. É flexível, de cintura mole, manipulável nas regências e sufixos, rebolante nas concordâncias, infinitamente dadivoso nas criações. O português é língua de podes-ser, língua de talvezes, de quases, de umidades, de maciezas. Nosso português é mascável. É recheado. Farto. Suculento. Generoso nas ondulações como as mulheres da terra. Vário como a fauna, a flora, os gostos, os temperos. Cheiroso de canela, lambuzento de manga. Cremoso. Abundante.

Meu coração fujão de retas, amante de curvas e alternativas, não podia pensar senão em português moreno de Iracemas e Gabrielas, lânguido e esquivo. Palavras que lá gorjeiam não gorjeiam como cá.

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