terça-feira, 22 de maio de 2012

Aquele abraço

Instituiu-se que fosse hoje, no Brasil, o Dia do Abraço. Não me admira tenhamos uma data assim: o Brasil é notoriamente abraçante – ao menos no que há de superficial. É cumprimento muitíssimo nosso. Agarramos até quase desconhecidos sem grande reserva, sem praticamente nenhuns pudores de convidar a nós um peito que nos é estranho. Vá assistir a uma final cascuda de futebol para ver se não. Abraçamos de frente, de banda, pelo pescoço ou com fúria, às vezes com demasiados tapas e em geral com suficiente entrega. Abraçamos estrangeiros na metáfora: com pouco tempo de chegada, o cidadão se considera nativo. Abraçamos festas e outras causas rápidas; se (exemplo) existem desabrigados da chuva, chovem roupas e mantimentos. Tudo é muito franco e direto, muito aberto e adequadamente simples. Eis a questão: não abraçamos o abraço no que ele tem de mais profundo. O abraço que envolve a coisa desde as primícias, desde a raiz de sua formação, desde o big bang de sua organização; o abraço que contempla andaime, base, infraestrutura, pacote completo, dedo na ferida. Nosso abraço brasileiro, tão pródigo, é o do tapinha ligeiro, da celebração do gol, do réveillon em Copa, da campanha de passar no mercado e levar leite em pó. Louvável. Mas falta cimento. Falta subterrâneo. Falta arar nossos latifúndios morais, improdutivos. Falta o abraço que agarra e insiste e morde feito carrapato. Falta o abraço renhido de vida e de morte.

Porque é assim o verdadeiro abraço físico: profundo. Não basta envolver a cintura e ficar um-dois segundos tocando levissimamente as costas do outro, enquanto se olha o infinito que mora além dessas costas com ar de quem está louco para se desfazer do carinho e retomar a liberdade. O abraço real olha o infinito que mora aquém das costas, que ali dentro mesmo se acha, se descobre, que tão cedo não pensa em soltar ou ser solto. O verdadeiro abraço é permanência. É o gozo da permanência no outro – numa instância em que não precisa haver a conotação sexual que tantas esferas perturba. Abraço é o jeito mais denotativo de aproximar corações, uma vez não se tendo, ainda, derrubado a impossibilidade de confundi-los no mesmo espaço e batida. E fomos projetados, olha que delícia, a fim de que justamente o contornar dos braços acabasse unindo a esquerda de um corpo à do outro, de modo tão mais colado quanto maior a dificuldade do processo. Porque nascemos frontalmente opostos é que os corações acabam grudados nesse esforço de abordagem.

O abraço verdadeiro é o exato mergulho – de corpo, alma, pensamento e relógio (ou ausência dele) – na mistura de calores e tum-tuns, na confusão de braços e peitos, na chance rara da simbiose platônica. Quem abraça, provisoriamente reside. Reside com toda a inteireza e tranquilidade na junção ao outro, sem pressa nem constrangimento, sem noção de nada mais que impeça a existência de ambos como ser xifópago. O abraço verdadeiro não prevê desejo de fuga e lamenta a rapidez com que é desfeito, por mais que durasse um trimestre. Quer ver um? procure nas despedidas – na gana com que o primeiro estreita o segundo, querendo enviar-se nele em anexo. Procure nos reencontros – na sede feroz com que o segundo se atira ao primeiro, desejando recompensá-lo da ausência por meio da unicidade. Procure nas dores simultâneas – na irmandade furiosa com que um coração sangra no outro a mesma perda. Procure nas alegrias partilhadas – na comemoração cega de felicidade em que um venturoso busca no outro a memória da mesma luta. Procure entre gêmeo e gêmeo. Entre compadre e compadre. Entre romeus e julietas. Entre mães e bebês.

Procure o abraço legítimo onde não sobrou espaço para o mundo entrar.

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