sexta-feira, 24 de março de 2017

A culpa é dos felizes

Outra de escritor português – desta vez, Miguel Esteves Cardoso: “Ninguém tem pena das pessoas felizes. Os portugueses adoram ter angústias, inseguranças, dúvidas existenciais dilacerantes, porque é isso que funciona na nossa sociedade. [...] E, no entanto, as pessoas felizes também sofrem muito. Sofrem, sobretudo, de ‘culpa’. Se elas estão felizes, rodeadas de pessoas tristes, é lógico que pensem que há ali qualquer coisa que não bate certo. As infelizes acusam sempre os felizes de terem a culpa. É como a polícia que vai à procura de quem roubou as joias e chega à taberna e prende o meliante com ar mais bem disposto”.

Apesar de a disposição dos brasileiros ser mais solar que a de nossos ascendentes melancólicos, a hilária observação de Cardoso casa conosco às maravilhas: levamos no sangue o irritante remorso da felicidade – pelo menos da felicidade entre pessoas urbanas, informadas e instruídas. Achamos liiiiiinda aquela reportagem que mostra um senhorzinho ou uma senhorinha do interior dos interiores, plenamente realizadx com sua terra florida, a netarada reunida no Natal e a rotina bucólica; suspiramos pelo locus amoenus, pensamos em largar tudo pela vida à beira-mar depois da aposentadoria, mas na primeira consulta médica vamos fazer torneio de dores na sala de espera. Na primeira reunião de colegas, ficaremos constrangidxs por não ter grandes sofrimentos a desabafar. Estamos bem resolvidxs no trabalho, o amor segue alegre e cúmplice, a parte espiritual caminha serena e firme, a situação financeira não é das piores, a saúde está dando pro gasto, não há filhos ou pais doentes, não há dívidas, não há hipotecas. Ou seja: não somos interessantes, e evidentemente temos algo de errado.

Gente de classe média, cidade grande, corada e nutrida precisa de uns bons dramas com vinho tinto para ser alguém, ou então é jogada na geena dos medíocres e inexperientes. Precisamos suar mares para conseguir o mestrado, chorar sangues na tese de doutorado, batalhar um Vietnã pela promoção, estacionar num dilema horrível sobre a maternidade, encarar jornada tripla sobre salto agulha, ter uma ou outra distensão após as cinco horas de academia, enfrentar um péssimo síndico no condomínio – ou seja: sofrer. Sofrer explicitamente, indiscutivelmente, em voz alta. Sofrer é o cartão de visitas da decência e consideração. Não sofrer o suficiente é afrontar o esforçaholic que em tudo vê (com horror) fraqueza e comodismo; é debochar dos que empenham fortunas no personal, no coaching, no terapeuta. “Você é que é feliz”, sibilam os eternos angustiados ante os satisfeitos, mas no tom que é mais desprezo e acusação do que inveja propriamente – como quem resmunga: “Ó ser limitado e vil que não tens bocas a alimentar, que não lutas na justiça contra o inquilino que não sai, que jamais quebraste a perna ou te perdeste na mata, que em nenhum momento vês tiroteio ou assalto, que todo ano viajas com esse salário de fome sem ambicionares aumentá-lo, que assumes unicamente os encargos que te dão na empresa, arreda-te de mim! Desvia tua casta da minha!”. O feliz evidentemente é belo porque fez plástica, é hippie porque papaizinho sustenta, comprou carro novo porque arranjou falcatrua, tem um casamento lindo mas vai ver quantas brigas o prédio escuta? O feliz é um suspeito, o feliz é o mordomo, o feliz está indubitavelmente escondendo o jogo. O feliz é uma ofensa.

Terceirizar o desconforto com nossa infelicidade urbana, chique, neurastênica e obrigatória: quão brasileiro, quão humano. Somos filhos da Inquisição, do beija-mão, do coronelismo, do americanismo. Nascemos fartos de todo lirismo que seja libertação. 

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