domingo, 5 de março de 2017

Estado de enigma

Um dos personagens principais do romance O margal, de Georges Ohnet – esquecido autor francês do século XIX – é um velho nobre arruinado que nada vê, nada sente, nada toca além de sua mania ensandecida de invenções. Não importa o inimigo mortal que virou credor e o quer expropriado e mendigo, não importa a família que o protege que nem criança das dívidas que mastigam a casa; importa, exclusivamente, o forno moderníssimo que ele tenta desenvolver há décadas e que (esperança!) levará seu sobrenome à riqueza. O problema é a inconclusão doentia, eterna, porque “o aperfeiçoamento era o vício do marquês. Uma invenção nenhum interesse tinha para ele senão em estado de enigma. Uma vez decifrado, cessava de agradar-lhe. Seu espírito inquieto punha-se à cata de um outro resultado. E raras vezes ficava no que havia descoberto. Era-lhe sempre necessário o melhor, esse destruidor do bom”.

O melhor, esse destruidor do bom. Quem nunca? Fomos criados para correr do medíocre, fazer inglês, informática, balé, teatro, xadrez, faculdade, mestrado, doutorado, Harvard, Sorbonne, MBA – em busca, sempre em busca. Às vezes o salário nem cresce tanto, ou cresce 10% enquanto o serviço triplica, mas quem somos nós para recusar uma promoção? a chance do milênio? a empresa de todas as invejas? Quem somos nós para aceitar permanecer, credo!, mais de um ano no mesmo cargo? Uma pista: somos gente que tem sonho erótico com feriado, que capota em vez de brincar de treinamento jedi com os filhos, que no fundo só queria uma bicicleta e uma plantação de tangerina. É pedir muito? Pior, é pedir pouco, pouquíssimo, e nenhuma casinha com varanda pode nos interessar, a nós que temos a obrigação lavrada em cartório de querer só o mais e o muito que continuam em estado de futuro, em estado de enigma. Vivemos o inferno compulsório de desbravar ou fracassar.

Call me crazy, mas fracassar não parece tão ruim quando se tem horário flexível, não se precisa dormir com 30% do olho porque a Bolsa pode ter um infarto fulminante, há tempo para livros e séries, cinema em dia de semana e terra molhada. OK, mediocridade deixou de ser in lá nos mil e setecentos, e nem eu aconselho a ninguém que estacione na frustração e no sofá. Aconselho, sim, que se escolha com pupilas sensatas o seu enigma perpétuo – de preferência um que não envolva cifrões nem condices de Monte Cristo, nem diplomas sem tesão, nem ambições de Nobel. De preferência um que a morte não leve, e que, ficando, aumente perenemente e não bote os herdeiros em luta. De preferência um mais abstrato e que empunhe sabre azul. Ou verde.

Se for para ser fanático por enigma, que seja o modo de fazer a informação chegar às sinapses de mais pessoas, que seja a forma de interrogar o Google sobre o presente perfeito, que seja o projeto de extinguir a fome pelo menos da multidão mais próxima. Que se fique insaciável por estratégias de colocar mais gente feliz, por viagens a lugares subestimados, por jeitos simples de melhorar o bairro, por maneiras de deixar a água amplamente acessível, por truques caseiros e baratos para tirar mancha, por lares definitivos para bichinhos órfãos de gente, por filmes que nunca imaginamos o quanto poderiam ensinar, por ideias bafo de decoração prática, por doações de tempo e ombro e roupa e sangue e alimento e medula, por coleções de amigos intermináveis. Que seja nosso enigma de estimação a caça ao bom e ao belo, e a certeza de que haverá os melhores meios de distribuição.

(Ao menos os meios de distribuição possíveis no momento. Que ninguém fique sem o necessário porque um orgulho teimoso não desiste de enfiar um hipermercado no caminhão de entregar.)

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