segunda-feira, 27 de março de 2017

O que está deixando de ser

Passou por mim um videozinho em inglês que conta, com ilustrações simpáticas, pontos importantes da biografia de uma determinada mulher. Pontos barra-pesada, especialmente. Segundo o vídeo, a pessoa em questão foi rejeitada pela faculdade aos 17 anos; aos 25, perdeu a mãe para uma doença; aos 26, sofreu um aborto; aos 27, entrou num casamento violento e abusivo, do qual nasceu uma filha. Um ano mais tarde, divorciou-se e foi diagnosticada com depressão hardcore – não admira, já que, aos 29 anos, só conseguia criar sua bebê sozinhamente com o auxílio do governo. Aos 30, enfim, culminou o quadro considerando a possibilidade do suicídio. Mas não sei que forças tirou, e de onde, para colocar toda a genialidade e energia no que sabia fazer de melhor: escrever, e escrever porreta. Aos 31, deu à luz o primeiro livro (o vídeo não diz, mas a gente sabe que a pérola foi antes rejeitada por montes de editoras); aos 35, já tinha lançado quatro, e foi eleita Autora do Ano. Com 42zão, vendeu 11 milhões de cópias de uma nova obra – atenção, respire – APENAS NO DIA DO LANÇAMENTO.

A essa altura a gente, hiperventilada e carecida de um desfibrilador, já adivinhou o que o videozinho revela em seguida: “Essa mulher é J. K. Rowling”. E em letras menores: “Lembra que ela pensou em suicídio aos 30 anos?”. Sim, lembramos; e de tal forma estamos paralisados de horror, ante a chance de uma realidade alternativa em que Harry Potter nunca tivesse existido, que não lemos mais nada das mensagens autoajudantes do vídeo. Harry Potter – HARRY! POTTER! – jamais teria jogado quadribol, voado num hipogrifo, recebido carta-coruja se J. K. houvesse sucumbido às dores e entregado os pontos. E eu jamais usaria como chaveiro o brasão de Hogwarts. Jamais visitaria Hogsmeade. Jamais poria na prateleira uma caneca de cerveja amanteigada.

Não sei se todas as informações do vídeo procedem, mas o alvo certamente foi atingido: já estamos acachapados pela vibe A felicidade não se compra e aflitos com a percepção do quanto a ausência de uma vida pode representar. Claro, a probabilidade de haver por aí muitas outras Jotacás em embrião é infelizmente pequena; não se deve realisticamente supor que todos, tendo força e chance e amor e cuidados, seriam tão fabulosos a ponto de se desdobrar em milhões de leitores, gerar trilhares de empregos, desenvolver vacinas que salvassem outros tantos quinzilhões de vidas, criar tecnologias que se tornassem dramaticamente indispensáveis. Alguns, porém, o fariam: alguns dariam abraços quentinhos em parte considerável da humanidade – instruindo, curando, estimulando –, se as CNTP lhes permitissem levar a cúmulo seu potencial. A maioria nunca seria gênio, nunca seria tão unânime e tentacular. Mas tenho a audácia de afirmar que mesmo cada um desses, se aproveitado com engenho e arte, levaria fácil um rótulo igualzinho: dramaticamente indispensável.

A natureza é por si econômica, não se desperdiça, não faz excessos. Nessa crença fico: quem chega a ter oportunidade de existir, ainda que por enquanto num montinho de células, já é fundamental por algum motivo. Já preenche o mundo de um jeito que só elx pode. O desperdício acontece quando a bagaceira social nos extravia, a burocracia nos achata, o braço do crime puxa mais forte que o da educação, o amor não chega e a droga compensa. Aí damos errado, mas darmos errado não é o natural, darmos errado é o desvio. Aquela criança na rua (mas não da rua) tem em si um germe de metáforas, um olho crônico para a poesia, abafado pelo entorpecimento do crack; poucos suspeitam, mas em doze anos ela conheceria o amor de sua vida, teria três filhos e o caçula viria a ser um dos melhores dramaturgos de sua geração. Aquele rapaz que mofa no presídio por ter participado de um assalto pretendia, na verdade, uma zoeira entre amigos, porque é a primeira vez que um grupo o aceita desde que o pai abortou sua existência e a mãe começou a beber; está agora aprendendo novos truques com novos amigos, em vez de ter entrado para o curso técnico que sonhava – ele que era craquérrimo em Matemática na escola e (ninguém sabe) viraria um engenheiro com participação essencial na ampliação do metrô. Aquela senhorinha que morreu ontem no corredor do hospital era mestra no origami, fazia oficinas com crianças de um outro hospital, porém não resistiu ao não recebimento (por cinco meses) de sua aposentadoria – ela que ainda ensinaria a dobradura dos tsurus a uma garotinha com leucemia, que descobriria uma paixão e comoveria a mídia com sua persistência em criar centenas e centenas de tsurus coloridos, o que levaria milhares de pessoas enternecidas a entrarem no cadastro de doação de medula.

Alguém que lhe apresentaria seu melhor amigo não chegará a apresentar, porque uma depressão não percebida nem acompanhada o roubará aos 23 anos. Alguém que lhe emprestaria o filme decisivo para sua escolha de fazer Cinema não chegará a emprestar, porque a perda de um filho em um tiroteio o afastará progressivamente de qualquer convívio. Alguém que se tornaria seu professor favorito na faculdade não chegará a se tornar, porque o bullying severo na escola o fará largar os estudos na adolescência. Uma ruma de excelentes pesquisadores, pintores, pedreiros, médicos, músicos, líderes comunitários, funcionários da Pixar, Doutores da Alegria, parceiros de chopada, colegas de fandom, comadres, amores – não está sendo, não está vingando, porque não está havendo suficientemente quem enxergue, ajude, ampare, adivinhe, reforce, empodere, oriente, defenda, compreenda esses corpos e essas psiquês que nem sabem gritar socorro, que são frágeis diante do vácuo imenso, que dançam ou são jogados no abismo por causa da incompetência coletiva em lidar com a necessidade humana. O governo não os nota. Os familiares não dão conta. Está todo mundo ocupado com sua abacaxice interna e distraído dos investimentos melhores, os mais insuspeitos.

Onde há gente que não vemos, há pequenas magias e milagres que estão deixando de acontecer.

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