sábado, 4 de março de 2017

Musiquinha de comédia

Me chame para reunião de condomínio, fila de banco, venda de rifa na escola, apresentação de fagote da tia-avó – mas não me chame para ver comédia. E não porque eu seja emburrada e odeie rir; pelo contrário. Tanto gosto de rir que costumo de-tes-tar comédia, ou seja: aquele troço que já foi feito e rotulado como graça padrão, a “graça” estridente, caricata e exagerada que pode me dar pena, raiva, tudo menos o impulso gargalhesco. Pastelão, pantomima idiotizante, três-patetices que enfiam o dedo no olho e dão na cara do vizinho, american pies e genéricos tosco-escatológicos, humor de bordão e repetição – vade retro! essa bodega toda, que só me arranca náusea. Curto suavidades, por isso abomino o texto grosseiro e óbvio como um sol de 48 graus direto na testa. Admiro as sutilezas, portanto ninguém me espere no sofá para assistir a programa com claque, que chuta a gente no fígado: hora de rir, sua anta. Principalmente, estimo demais o livre-arbítrio – logo, sou tomada de revolta assassina ao ouvir a desgracenta musiquinha de comédia, um dos cúmulos da manipulação. Como ODEIO aquela trilha rápida, viva, engraçadinha que berra “piada à vista”, manda ter tolerância e não levar a sério nenhuma das informações contidas na sequência! Como ODEIO o desrespeito à nossa sensibilidade e percepção! Com que gosto abandono a história ao menor indício dessa sonoridade maldita!

Exagero, vá lá: me julguem. Sou chata mesmo, e inimiga do histérico e do fosforescente. Mas também sou capaz de rir possuída – só que do humor-agulha, fino, cerebral, insuspeito nas brechas, elegantemente encaixado no contexto e não anunciado aos ventos como grande estrela. O humor dos filmes de Ricardo Darín, por exemplo; o de uma ou outra piadinha da franquia Marvel; o riso discreto presente em meu amado Criminal minds (que, em sua essência, é uma série de investigação psicológica e exibe alguns psicopatas de perfil hardcore); a gaiatice imperturbável do historiador Leandro Karnal; a exaltação impagável do professor Clóvis de Barros Filho – exaltação que não é, porém, a finalidade do discurso, e sim mero instrumento do conteúdo filosófico. Gosto do circunspecto humor britânico, tão mais divertido quanto mais sisudo; gosto de Buster Keaton e Charlie Chaplin, mas não da alegria desvairada do palhaço típico. Raramente rio do que é produzido com o objetivo primordial de ter graça, ou de ter graça infantil. Há exceções, no entanto, entre os que são humorísticos de propósito. Era inevitável a gente se escangalhar com Os Trapalhões dos tempos áureos, e hoje em dia eu quase beiro a crise de asma com o excelente Tá no ar; nada como a inteligência docemente temperada de cinismo.

Dizem que, sejam quais forem nossas características, a gente se agrava com os anos. Pois me agravei: se já não era fã do escancarado, me tornei a Impaciência, prazer em conhecê-lo. Criança tem abundância de vida pra gastar com bobagem, como quem torra a mesada comprando pirulito; eu, que já passei da fase do tubo de ensaio, prefiro mesmo um bom almoço, tempero cuidadoso e muita substância. A vida corre e escorre demais para me desperdiçar com humor tosco – porque o humor esperto nos guia, nos alerta, e o tosco nos desvia do assunto. O tosco ri dos oprimidos e não dos opressores. O tosco não tem sutileza e chafurda em preconceitos. O tosco é normalmente feito para neurônios em nível de desenvolvimento pré-fetal.

Na dúvida: se tiver musiquinha de comédia, no mínimo desconfie. Graça que é graça não toca a trombeta e, em geral, acontece quando a gente nem está olhando. 

Nenhum comentário: