sexta-feira, 17 de março de 2017

Fora da asa

Eu há pouco falava de liberdades e voos, e lembrei aqui que Manoel de Barros, o magnífico, soltou: “Poesia é voar fora da asa”. Quem está em condição de poesia já veio condenado de fábrica a se transbordar, e sofrer quase sempre, porque no transbordar vem normalmente o explodir. O poeta (que nem toda vez escreve; às vezes é simplesmente quem tem olhos de ler, é um poliglota passivo da beleza) nasce com o espírito trinta números maior que o corpo, e não à toa enlouquece, entristece, anoitece, nesse abafamento sem fim de um coração que não cabe. Os destinados à poesia são necessariamente claustrofóbicos do mundo, têm uma bronquite estranha de quem puxa o ar da vida e ele não entra suficiente; procuras de poeta são excessivas para a oferta pouca do universo – a asa, por mais que cresça, pede um voo maior. E lá vai o poeta, sufocado e rarefeito, com pulmões que ao mesmo tempo solicitam e não comportam.

O mundo não foi feito para o poeta; o poeta carece de mundos. Outros quintais, de início; outros países, em sequência; outras dimensões, em definitivo – e, como outras dimensões não dão sopa no armazém, o aprisionado da poesia tem de se haver com ficções: livros, filmes, construções próprias e alheias. Não bastam as gentes existentes deste lado de cá da realidade, é urgente derrubar todos os muros, liberar todos os infinitos possíveis, desenclausurar conceitos que (o poeta nunca entenderá) tantos teimam em algemar e atirar no fundo do camburão, quando serviriam tão mais lindamente como sal da terra e luz do mundo. A lógica de quem nasceu para desprezar o (só) material e não achar suficiência no etéreo é pura, é translúcida: tudo que é belo deve ser autorizado a expandir-se, não ser temido, não ser desdenhado. Ao poeta, eternamente estrangulado de vácuos, endoidecem os desperdícios de ar.

Ser dependente de poesia – não somente em versos, mas na mais larga escala – é conhecer exclusivamente a fome: tudo lhe cai bem e nada a sacia. Tudo é irmão do poeta sôfrego e nem o abraço inteiro da humanidade o preenche. Tudo é visível à sua gula e todo o conhecimento do que se move sobre a terra não o abarrota. A falta humana tem poucas vias de cura, a falta do poeta é triplamente perniciosa: seu buraco negro personalizado o mastiga, o exige, o massacra, e desse tormento de autodeglutição sobra apenas uma fênix de desejo. Morre o poeta, o desejo do poeta não morre – supera-o e lhe sobrevive. Seu amor fluido é a respiração que finalmente extrapola os pulmões, o oxigênio que transcende a gaiola da necessidade de oxigênio, o voo grande demais para a asa e que paira sobre a asa. O poeta é o desejo vivo; o desejo é o poeta morto. Ninguém, ao estalar, se mistura melhor à essência da natureza viva do que aquele que só poderia contê-la ou nela ser contido. 

Poesia é ser mais do que se está, saber mais do que se aprendeu, enxergar melhor do que se vê. Voar fora da asa. Voltar como quem foge de casa.

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