quinta-feira, 9 de março de 2017

Ser outro

“Viver é ser outro”, geme o fascinante Livro do desassossego de Bernardo [Fernando Pessoa] Soares. “Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.”

É uma doideira pessoana, mas como discordar? Se dia por dia não cresci meio milímetro, não me nutri de nenhuma fatiazinha de mundo, não aprendi o nome de nenhuma cor, não fiquei mais exasperada ou esperançosa ou melancólica por causa de nenhuma notícia, não atravessei em outro ponto da rua e finalmente namorei de longe a casa sempre amorfa de perto – que raio fiz eu em certa data, que raio ela fez em mim? Para que serviu comparecer àquelas 24 horas se não me acrescentaram uma página, um argumento, um nome, o inédito de um biscoito ou esquina ou perfume?

É essa, entretanto, a beleza: ainda que de ontem para hoje não tenhamos decidido fugir com um bandoleiro espanhol, nos converter ao hinduísmo ou comprar um apartamento na Etiópia, é impossível não termos mudado. Fomos ao mercado e resolvemos levar queijo branco em vez de manteiga, e ali, no corredor onde teoricamente não estaríamos, nos sensibilizamos com uma bochecha da mais espantosa suculência infantil, e então o relógio biológico bradou com pulmões que nem tinha; ou, ao contrário, nos aterrorizamos com a pirraça de um gremlin que bateu a cabeça no chão até a mãe comprar o iogurte, e nosso trauma foi tão definitivo que demoliu décadas e décadas sonhando com bebês. Se bem que – OK – desejo ou ojeriza de filhos é transformação ainda muito grande, e a ida ao corredor do queijo branco poderia simplesmente ter frutificado no esbarrão com um colega de escola, no acréscimo de um abraço à lembrança, no acesso à lembrança de um brinquedo ou aroma que hoje vemos tão novo. A ida ao corredor do queijo branco poderia ter rendido a mera descoberta da marca que passaria a nos fornecer a melhor comfort food. Poderia ter trazido um nojinho invencível de corredores de queijo, porque lá havia peças embolorando em plena luz do dia. Poderia ter gerado o encontro com a gôndola de revistas no caminho, e a gôndola poderia ter segredado a ultimate receita de suflê para o sábado, alguma pré-revelação de novela, o nome do ator que tentamos lembrar há dois meses, o tema da próxima aula. Por qualquer forma ou rota, com qualquer lucro ou arranhão, não sairia do mercado a mesma pessoa que nele entrou.

Raul cantou como desejo a metamorfice ambulante, mas o que o barbudão apresentou como escolha é, em verdade, nossa exata natureza: a gente vê um filme pela 84ª. vez e se encanta com um detalhe que 83 vezes nos escapulira, a gente volta do salão com outros olhos sobre aquele esmalte, a gente de repente se dá conta de que nunca (ou sempre) gostou de azul, a gente sente a velha simpatia escoar quando vê o vizinho bonachudo descompondo o porteiro. A não ser por motivos de coma afincado (e mesmo assim não podemos jurar que alguma atividade cerebral não nos agite lá por dentro), não atravessamos dia ou hora impunes de mutação. O imutável, sim, teria de ser nossa exceção escolhida; a mudança é compulsória.

A gente fica pelejando em nossa oficina interna para garantir que ela seja para melhor.

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