terça-feira, 7 de março de 2017

Aprender a morrer

“Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso porque, de certa forma, o estudo e a contemplação retiram a nossa alma para fora de nós e ocupam-na longe do corpo, o que é um certo aprendizado e representação da morte; ou então porque toda a sabedoria e discernimento do mundo se resolvem, por fim, no ponto de nos ensinarem a não termos medo de morrer.” O trecho é de um ensaio de Michel de Montaigne e tem potencial para garantir quatro ou cinco insônias. Ainda que com algumas olheiras, assino embaixíssimo do autor direto e do indireto: aprender é, na última das últimas instâncias, aprender a morrer. Nada se aprende de bom que não seja para viver melhor; e o que é viver melhor, a não ser perdoar o passado (porque existiu ou porque partiu) e se concentrar no presente para atingir um futuro devido – futuro sobre o qual há uma única certeza? Aprendemos para viver felizes, nem que “felizes” seja o apelido da serenidade trazida pelo conhecer; e vivemos para morrer felizes, já que toda história se busca coerente com seu final. E vice-versa.

Aprendemos a morrer quando passamos a nos atirar ao amor – não à paixão, bem entendido – com o desinteresse e a irrestrição de quem sabe que não levará melhor roupa de gala para o túmulo. Aprendemos a morrer quando a consciência do limite físico nos invade e automaticamente nos consola com o arquivo da experiência, que vem no mesmo download: quanto menos o corpo nos pesa, quanto mais sua importância esvazia as prateleiras, mais espaço fica para a verdadeira bagagem. Aprendemos a morrer quando os nhenhenhéns e os tititis só merecem uns revirares de olhos e suspiros de tédio, porque afinal o prazo é curto, curtíssimo, e há melhores lembranças a carregar na viagem do que fantasmas de tretas passadas. Aprendemos a morrer quando devoramos leituras e, consequentemente, vidas e gentes – e partículas dessas ciências múltiplas nos enlaçam, confortam, orientam sem que precisemos de todas as tentativas ou de todos os erros.

Aprendemos a morrer quando aceitamos e acertamos a vida: é isso que temos, é isso-isso-isso que queremos, é assim e para lá que vamos. O fim da narrativa organiza os meios, restringe-os e os define. Quem quer que escolhamos ser, seremos sempre nosso personagem do último capítulo – e geralmente demora uma novela inteira até que ele consiga, pleno, voltar para casa.

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