quarta-feira, 15 de março de 2017

Múltipla escolha

Bato um hi-five com Theodor Adorno quando diz que “liberdade não é poder escolher entre preto e branco, mas sim abominar este tipo de propostas de escolha”. Porque é um tipo de proposta elaborado por quem já pré-escolheu, já catou os feijões, já fez a seleção artificial e veio, triunfante, com as cédulas impressas. Não fico minimamente feliz nem com a “democracia” que nos leva a batalhas entre Jason e Freddy – embora entenda que esse péssimo sistema democrático é cinquenta e quatro milhões de vezes melhor do que sistema democrático nenhum –, quanto mais com esses pleitos fictícios que alguém inventa para nos enjaular o dia: Coca ou Pepsi (detesto ambas), blockbuster ou circuito Estação (adoro os dois), sal ou doce, verde ou vermelho, pop ou erudito. Vá entender POR QUE só duas opções acanhadas cabem, de cada vez, na pobre balancinha humana; pavor de descontrole? preguiça? maior chance de pertencimento? menor margem de erro? E aliás: por que mesmo, hein, temos o raio da balancinha madrasta? Com que objetivo sádico se reduz o mundo, inclusive o mundo mais prosaico, a um histérico escolher de time com direito a fiscal de butuca, pra ver se você não pisou na linha?

Não sou partidária da volatilização de tudo, o que seria também arrogância; confio em escolhas sólidas, firmes, infinitas. Mesmo assim, normalmente se assinala um entre vários, não há somente letras A e B: uma entre várias religiões, uma entre várias pessoas, um entre vários times – além da sempre possível alternativa “nenhum(a) das anteriores”. Podemos até nos comprometer pela eternidade com algo ou alguém, mas somos complexos, esmiuçantes, desdobráveis; o formulário não nos chega ( ) casar com Pafúncio ou ( ) casar com Dagoberto. O questionário passa por corredores infindos, desde o “não casar com ninguém” – podendo ou não incluir um “pelo menos agora” – até os parênteses com nomes de todos os parceiros casáveis do planeta, mesmo um lavrador dos confins da Escócia que nunca conhecemos; e desliza, no caminho, por um colorido gigante de variáveis: viajar a estudos e ficar com um estrangeiro, voltar para a terra natal e carregá-lo, morar lá por seis meses e cá nos outros seis, levar para lá a família inteira, deixar todo mundo aqui e fugir com o cidadão para um país J. Pinto Fernandes (que não tinha entrado na história), cansar do indivíduo e abandoná-lo numa esquina de Taiwan, viver 37 anos sozinha no Tibete e não conhecer absolutamente ninguém, jamais se afastar nem do próprio bairro (que dirá do país) e reencontrar um amor de infância numa festa, reencontrar um amor de infância numa festa e apenas passar a noite rindo dos velhos tempos, reencontrar um amor de infância numa festa e descobrir que ele virou lavrador nos confins da Escócia e retornou somente para visitar a mãe – mas, olha só, não vai te deixar escapar de novo. Recém-explodi só de considerar meia dúzia de enredos; a vida em si, que é enelhões de vezes mais abundantemente criativa, implode se confinada a um Fla X Flu que lhe é imposto. A vida assenta sim, e feliz, mas precisa escolher a toca. Precisa escolher de coração até a gaiola onde já a prenderam.

Posso frequentar os Vingadores, o CCBB, o festival de cinema iraniano e a Ilha da Caveira, e ninguém tem nada com isso. Posso perfeitamente ser neorromântica quase sempre e cismar de estar roqueira num fim de semana, e ir trabalhar no dia seguinte vestida sob inspiração steampunk ou nerd ou medieval. Posso ficar oitenta e dois anos dando aula de Português e puramente decidir virar fotógrafa, atriz, artesã numa cidade do interior que não tem nem internet; ou lavradora nos confins da Escócia. No que é possível e coerentemente variável, na mudança que não é automutilação nem desesperança – mas, ao contrário, uma amplitude maior de asa, para dar conta do muito que somos –, variemos. Alternemos estilo, cabelo, moradia, profissão, literatura sem dar satisfação ao espanto do vizinho, à intriga da família, ao motim do pessoal que só nos digere previsíveis e nos teme flutuantes. Agitamos as penas e há espaço de voo? Está tudo solto? está tudo certo.

A alegria é a prova que nos move.

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