domingo, 19 de março de 2017

Em suspenso

Uma amiga e ex-aluna já facebookeou que gosta dos tempos em suspenso – aqueles períodos de transição como o do metrô, por exemplo –, em que a gente respira e espera. Devo confessar que eu também. Muitos se aborrecem com os minutos “roubados” ao trabalho, se chateiam com a estação que não chega nunca, sacodem a perna compulsiva na fila do banco, enlouquecem no engarrafamento. Euzilda, a não ser que tenha horário apertado me aguardando (cinema ou início de aula, basicamente), permaneço de boas; adoro ser obrigada a “não fazer nada” – coisa que na verdade não existe, como eu ontem comentava, e só significa não fazer nada do trabalho, não fazer nada obrigatório e/ou mentalmente exaustivo. Não catuco celular, nem nisso vejo graça, mas me deem um livro e me esqueçam dentro dele. Fico ali placidamente depositada na nuvem, sem pressa nem questão de pousar em hardware.

Nesse tempo em suspenso no transporte, na sessão de físio, na sala de espera, temos a desculpa perfeita para não estar fazendo por estarmos a caminho de fazer: estamos chegando, acabando, indo. Como é bom nos recolher ao gerúndio e torná-lo nosso muro de Troia, a fortaleza onde não penetra a produtividade insana. Sem internet no celular (celular aliás desligado), sem computador para digitações ou pesquisas de prova, sem o material didático para consulta, sem chance de pagar ou comprar ou adiantar coisas, sem geografia que permita lavar roupa, que resta? A mim, um santuário de libertação profissional e cronológica; aos outros, o deixar-me ali, inacessível na paz. E que um transeunte ou colega de vagão não tente iniciar conversa, porque o tempo em suspenso são férias também de social: afundo os olhos afrontosamente no livro, ou fecho os olhos desencorajadoramente e afundo em mim. Até ser intimada pela aterrissagem, não volto à tona.

Deve parecer que não gosto de nada obrigatório, e não gosto mesmo, tanto quanto o restante da espécie – só não tenho problema em dizê-lo, nem preocupação com a crítica dos cumprimento-de-metaholics, nem tendências para síndrome de Estocolmo. Posso assumir com limpa franqueza que não gosto de obrigações porque cumpro todas, todinhas. So, ganho passe livre para o que sinto não ser da conta de ninguém. Adoro, sim, que falte luz (com a condição de não estar um calor senegalês) e que isso me sequestre de uma tarefa não verdadeiramente urgente; adoro que o filme atrase um pouquinho e eu possa aproveitar o abraço da luz apagada sem qualquer esforço mental; a-do-ro que minha senha custe um bocadito a ser chamada e eu consiga devorar mais um ou dois capítulos; adoro que o trânsito alongue um tantinho a carona e eu ganhe mais uns minutos de trilha sonora com vida passando pela janela. Ando devagar porque já tive pressa, e levo esse sossego porque já corri demais. Quem quiser me alcançar que pare um pouco – não tenho mais fôlego nem índole para a São Silvestre perpétua.

Agora muitinho com licença, que meu programinha já dá mostras de começo na tevê e eu devo me sujeitar à condução coercitiva até a sala. Dentro de instantes, assim que eu for constrangida a ficar livre, voltaremos à nossa perturbação normal.

Um comentário:

Camila Rodrigues disse...

Que lindo Fe! Me lembrou um texto sensacional das memórias da infância de Benjamin, no qual ele fala da tempo da espera de uma criança que estava sempre doente, é a quarta e última imagem (texto) nesse link http://pequenidades.blogspot.com.br/2014/06/passeios-pela-infancia-com-walter.html
Te adoro Fe :)
Beijos
Camila