sexta-feira, 31 de março de 2017

Alteridades

O querido Mia Couto já escreveu que “o culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade”. Suspeito instintivamente que entendi e concordo: quanto mais se idolatra parnasianamente o papel pelo papel – o livro pelo livro, o estudo pelo estudo, o acúmulo pelo acúmulo, o diploma pelo diploma –, mais se cria um desvio poderoso em relação à utilidade do estudo, do acúmulo e do diploma, que não é embalofar alguém de informações e títulos, e sim enchê-lo de vislumbres (e deslumbres) do outro. Tecnicamente, não se estuda para depois dar o anel a beijar e ser tratado de doutor; estuda-se para se ter acesso a desdobramentos de nós, a simetrias e explicações de nós que jamais teríamos na vida acordar-tomar-café-trabalhar-voltar; e se estuda, mais ainda, para criar contato profundo com o que não somos e nunca seríamos, mas que precisamos reconhecer como existente e perceber como pulsante, antes de respeitar como legítimo ou abraçar como irmão.

E quando digo estudar, não digo se entulhar de análises e teorias com data de avaliação pesando sobre os ombros, mas ler com prazer sem ler apenas por prazer; ler absorvendo, ler mastigando, ruminando, compreendendo, não buscando matança de tempo sumária. Porque leitura é exercício de empatia, é a forma de transmissão de gentes através dos séculos, e não merece nem prostração de joelhos, nem indiferença de sala de espera: demanda amor. Só uma leitura bastantemente amorosa pode nos ensinar que é possível haver Emma Bovary – nós que nunca seremos adúlteros, temerários e suicidas, mas que em Emma o somos, chafurdando assim no lado agudamente humano que (felizmente) nos falta. Só a leitura generosa e entregue nos põe no peito o castíssimo amor de perdição de Simão Botelho, a esquisita ambição vermelha e negra de Julien Sorel, o orgulho de Mr. Darcy e o preconceito de Elizabeth Bennet, a exasperação romântica de Werther, a amargura vingativa de Hamlet, a ingenuidade malucombativa de Alonso Quijano, a angústia desamparada de Gregor Samsa, o eterno rebootar de Jean Valjean. Também rebootamos quando ali nos botamos completos, mergulhados; somos Outros, estamos em Outros, consequentemente não julgamos Outros. Dentro, realmente dentro da leitura, aceitamos Outros tanto quanto nos aceitamos, já que ali e só ali escancaramos a sala mágica do pensamento alheio, essa coisa que parece maldita quando vista da janela e tão, tão familiar quando atravessamos a porta de corpo inteiro.

Livro é a selfie do conteúdo, é a mensagem na garrafa navegando gerações adentro. Reverência à cultura livresca, por si mesma, só tem aquele que joga fora o individual da mensagem e armazena como troféu o vazio da garrafa. 

Nenhum comentário: