terça-feira, 14 de março de 2017

Um luxo

Tem gente que cresce o olho em cima de casas forradas do mármore mais exclusivo, pé-direito de nove metros, teto catedral, claraboia, lustres de cristal vienense, oitenta e quatro mil tapetes tecidos a ouro, hidromassagem, espelhos do oiapoque ao chuí dando inveja ao salão da Colombo. É luxo, OK, mas um pouco aterrorizante – e meu espírito prático é incapaz de não se perguntar: quem limpa? –, bastante over e balofamente desnecessário. Claro que gosto de coisas bonitas, amo as frescuras delicadas dos mil e oitocentos, porém não viveria no meio dessas mesmas frescuras, que curiosamente não têm frescor. Cristais, mármores, dourados, colunas, tapeçarias enfeitam a ficção que é uma beleza, mas na vida real ou são rutilantes e nos intimidam, ou são impraticáveis e decadentes – e nos melancolizam em dobro. Ou são um Olimpo de que estamos excluídos, ou são uma ruína bêbada. Quer saber? Se fizerem realmente questão de me dar um palácio de níver, cancelem o palácio e me deixem um castelo; medieval, de preferência. Não um construído em honra de minha excentricidade: medieval legítimo. Simples, todo na pedra, limo crescendo, hera cobrindo as torres, florezinhas polvilhando a hera, um ou outro salão esplêndido sim; mas de luxo, mesmo, três coisas essenciais: biblioteca. História. Passagens secretas.

Quero um castelo com seu próprio fantasma de Canterville, com narrativas de almas atormentadas escondidas nas frestas, com masmorras antiquíssimas onde um Conde de Monte Cristo largou pistas de sua contagem de tempo, ou bilhetinhos de dores choradas, como a prisioneira de V de vingança. Quero um castelo em que haja primeiras edições de livros proibidos, antigamente perdidos para sempre; em que haja escadas despertadas a um toque na prateleira, a um torcer de candelabro. Quero um castelo onde ninguém saiba que viveu e morreu uma dama que todos consideravam louca, e era apenas poeta ou saudosa, ou ambos. Um castelo com quartos de que ninguém tem mais a chave, porque num desses quartos – dizem – alguém foi emparedado, alguém deixou tudo como era antes da morte do filho, alguém escreveu e escondeu uma obra-prima, alguém definhou de amor, alguém teve uma visão e se tornou santo, alguém foi trancado enquanto seu sósia tomava seu lugar. Quero um castelo com mais cômodos desconhecidos do que visíveis, e cinco mil dimensões paralelas para explorar antes do almoço.

Não sei de que jeito, mas preciso encomendar um castelo que tenha um mapa só encontrável em determinado baú, em determinado horário de determinada data, e nesse mapa um caminho que serpenteia pelo quarto do rei, o antigo coro do convento, a lareira da biblioteca (ah! a biblioteca!...), a segunda pedra da octogésima fila do pátio dos cavalos, a alcovazinha do príncipe que morreu menino, o símbolo gravado no anel concedido pelo herdeiro mais velho à camponesa que, na verdade, era sua desaparecida irmã. Preciso desse castelo onde ninguém me ache nos intervalos das refeições, porque estarei escarafunchando diários e terei me enamorado de encantos pela pinacoteca íntima – já que atrás de cada quadro haverá, infalível, a estrofe de uma sina de família, de uma lenda que um dia se concluirá no achamento do tesouro. Preciso desse castelo em que o luxo não será o tesouro, mas o achamento mesmo – em todo o seu processo, seu romance, sua fabulosa solidão ou sua aventurice à moda Goonies. Preciso dessas paredes que sangrem, que gritem, que se peçam libertadas, ouvidas, adivinhadas, captadas no mistério que tem urgência de explodir, viver, dessufocar. Preciso do segredo que não está em delação ou gabinete, que não é de joia ou cargo ou propina; preciso do segredo que é de amor, que está na ilha, que mora na torre, que canta no trigal, que abafa na máscara de ferro, que foi sequestrado por piratas, que foi o pesadelo do mago da corte, que voou no tapete, que dormiu por setecentos anos, que só acorda com um beijo.

Quero o luxo dos segredos mui passados. O luxo de um quarto do pânico mofado de fadas, para fugir de um futuro que nos bombardeia com setecentos anos de trabalho forçado e bobos da corte na direção. 

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