sábado, 18 de março de 2017

Vagando

Todo mundo pergunta o que a gente faz nas horas vagas, e o impulso é forte de responder: mas como posso fazer alguma coisa, se são vagas? Implicância; sei bem que “hora vaga” é o que se supõe existir fora do tempo oficial de trabalho, o que é exclusivamente instalado no campo do prazer e/ou – porque não remunerado – provavelmente inútil. Se é esse o critério, lamento informar, mas não tenho horas vagas. Não estou em hora vaga enquanto vejo Criminal minds, porque as células cinzentas se sentam todas para aprender meandros da alma e estruturas de roteiro. Não estou em hora vaga quando me deito com um romance do século XIX, por motivos idênticos, ainda que com manifestações opostas. Não estou em hora vaga quando vou ao cinema (é aula do mesmo jeito), passeio no shopping (acha que não fico minhocando enquanto observo placas, gestos, frases, costumes?) ou na praia (idem, ibidem). Não estou em hora vaga quando me recosto no sofá, já que possivelmente rumino projetos e dúvidas; não estou em hora vaga quando corro os dedinhos no Face, que tem sido fonte balofa de informação; não estou em hora vaga quando durmo sequer, visto que o subconsciente continua loading, rodando programas em segundo plano para melhor servi-lo. Desconheço o conceito de “não fazer nada” ou de achar qualquer inutilidade em trechos do dia. Não ganho por hora-sonho, é verdade, mas a hora-sonho está para a efetividade da hora-aula assim como a construção da nuvem está para o toró.

Então ninguém tem tempo vago? Olhem, queridos: só creio que um ser humano esteja absolutamente vazio de ações no coma e na morte – e mesmo assim, quanto ao primeiro, não tenho certeza. Sei que, nestas eras de culto à produtividade e heretização do ócio, ser chamado vagabundo é o cúmulo da ferida na honra (há coisa de duzentos anos, daria duelo de morte), mas os supostos vagabundos se tranquilizem com o segredinho que a gente só divide com os parças: nenhum de nós está desocupado. Pode estar bem ou mal ocupado; desocupado não está. Brincando a criança elabora seus terrores, ouvindo música acessamos nossas feras e administramos afinação e ritmo, debruçando na janela pescamos uma bem-aventurança no cheiro da umidade fresquinha, boiando no mar voltamos ao estado de comunhão primitiva. Sim, há o tempo que desensina em vez de construir – tempo de fofoca, de programa de pegadinha, de anedota com preconceito, de hinos de incitação a tantas violências, de briga, de bullying, de páginas de lenda urbana ou apologia de ódio –, por isso mesmo devemos ser gente que se vigia: ou evoluímos ou involuímos, não fomos feitos para permanecer, para algum lado as horas nos levam e nos escoam. Somos cronicamente incapazes de não aprender ou desaprender a cada braçada do ponteiro.

De mim para mim, abençoo solenemente essas falsas horas vagas, em que o emergencial do trabalho não nos impede de ser o que seríamos nas CNTP. O trabalho nos forma e sustenta, mas é talvez o que mais nos mascara – no íntimo e no recíproco. Dele nos vem um ser de contingência, uma natureza implantada e de adoção, que nos rouba pedaços do percurso lento, elaborado, de nos transformarmos em quem já somos.

Trabalhar pelo cartão de ponto e pela linha de produção nos desgasta. Trabalhar-nos ponto a ponto e nas entrelinhas nos desbasta. Nos refina. Nos aperfeiçoa. Nosso lucro pessoal se amontoa num alguém que construímos devagar.

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