domingo, 12 de março de 2017

A distância entre nós

Assisti recentemente a um filme – não vou dizer qual para não contaminar a experiência de ninguém – em que um personagem dizia a outro: “Ela não é minha filha, mas eu a amo. Você não a ama, mas ela é sua filha”. Foi inevitável pensar nessa complicação mesma; como é inexato, como é inespecífico esperar que a voz do sangue, romanticamente, grite mais e traga o imediato sentido de pertencimento, apenas porque umas cobrinhas do DNA têm alelos em comum (não sei que biologia é essa de que estou falando, nem tenho paciência para recordar os termos técnicos. Segue o lance). Virou tabu, com os séculos, soltar a mera sugestão de que pais e filhos possam não se amar incondicionalmente, ainda que os genes usem a mesma roupa. Instituiu-se a glorificação do sangue que fala acima de tudo. Pois olhem: não fala acima de tudo. Ou, se fala, há que se levar em consideração o componente instintivo da espécie que deseja lançar raízes, e se protege nos filhos. Mas não foco aqui em autopreservação, foco em amor, e amor é bicho construído – mansamente construído. Não corre na veia, corre na vida. Se a mãe ama o filho recém-parido é porque, na realidade, já vem de nove meses de convivência intensiva, e o pequeno hóspede virou rotina em sua melhor face. Ainda assim o namoro continua após o parto, continuará sempre; o DNA, sozinho, não segura paixão eterna entre as gerações, que prosseguirão se conquistando futuro adentro.

Marido e mulher se divorciam porque não têm mais paciência ou condições de namorar (ou nunca tiveram), mas o rifão diz: filho não, filho é para sempre. Deveria ser, pessoas amadas – como o amor a dois também deveria –, e no papel continua sendo; na prática, no entanto, existe divórcio de filho e existe de monte. As criaturas pretendem que o consanguíneo seja o elo inquebrantável, mas elo inquebrantável, entre humanos, só conheço um, e dá um trabalhão permanente. Amor só nasce e se firma no contato, na presença, nas pequenices que enternecem, nas renúncias que o sorriso disfarça, no não julgamento que brota do respeito absoluto, na empatia que faz musculação diária, no afeto pelas manias miúdas que se passa a reconhecer e incluir nas saudades, nos rituais que selam a família, no incentivo que se oferece generoso, na gratidão pelo silêncio mais eloquente e educativo que o palavrão da bronca, na serenidade semeada pela não ameaça, no conforto e segurança da não violência, na confiança da não omissão. Amor se planta, rega, colhe, recomeça; tão absurdo é querer vê-lo cultivado uma vez e fixo pela eternidade, quanto esperar do mesmo campo a mesma produtividade infinita, sem transformação, sem empenho, sem investimento. A terra se esgota sem insumos. O sangue também.

“É claro que os amo, são meus filhos” – é pouco, é covardia, é mentira, é fuga, não basta. Filho veio para ser amado do mesmo jeito que (no universo ideal) foi convocado: de propósito. Ama-se aquilo que é próximo, e proximidade não é coordenada no GPS, não é o quarto ao lado; é escolha. E é prática. Amor tem que se afagar todo dia para aprender a ser (da) gente. 

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