quarta-feira, 1 de março de 2017

O nevoeiro

O belo e oscarizado Moonlight se divide em três atos que correspondem a diferentes idades do protagonista: infância, adolescência e adultice. Em cada ato o personagem é identificado por um nome em especial, o que rima com sua busca nunca terminada pela identidade verdadeira. Uma coisa, porém, não só não muda jamais como é justamente a marca maior dessa batalha inglória: o silêncio. Chiron, o protagonista, tem uma terrível e agonienta incapacidade de se botar em palavras – em parte por defesa, em parte por bug de digestão mental. Dez minutos de projeção e a gente já quer sacudir a criatura de nervoso e desembuchar-lhe as dores. Mas eis a pergunta do milhão: que dores? Não que o menino não as tenha reais e imensas; é o exato oposto – tão reais e imensas são elas (mãe drogada que se prostitui, perseguição na escola, ausência paterna, falta de perspectivas, questões de sexualidade incompreendidas e penosas) que Chiron simplesmente não sabe por onde se começar. Sofre, cala e evita a eloquência até dos olhos sempre baixos.

Muito infelizmente, não são raros os meninos e meninas – em diversos atos e idades – tão habituês do caos que não conseguem achar a trilha de pão que os retome de seu abandono. Gente muda de perplexa consigo mesma, gente tonta de sua ferida que tudo perpassa, como um tumor que devora os órgãos sem radar. E não descobrir a ponta do fio de Ariadne no meio da nuvem de pasmo é apenas fragmento; o pior é que dói a procura. Dói a própria tentativa de verbalização, como dói qualquer limpeza de machucado. Mencionar o que nos aflige não é só difícil, é arranhante; enquanto a dor gira confusa, numa grande massa cósmica, há uma chance remota de fingirmos que não existe, tal qual negação de doença não diagnosticada. Quando é finalmente dito ou escrito, porém, há materialidade, realidade, registro – um trabalho a enfrentar, uma saga a cumprir. Verbalizar nem sempre melhora, mas ao menos guia; tira o pesadelo da sombra e traz para a prosa; arranca o místico da dor, faz o éter virar plástico, faz o estritamente pessoal virar comum e reconhecível. É isso que também (às vezes) nos impede de pelejar pelo fim do nevoeiro: um certo ciúme do que era só nosso e vai ficar universal.

De que jeito medicar o silêncio alheio? Com amor e escuta se medica tudo que há para ser tratado (claro que falo aqui dos primeiros socorros, soro caseiro d’alma, já que o ideal é poder incluir ajuda profissional no cardápio). Nunca se sabe onde está a chavinha, mas se sabe perfeitamente onde não está: gritos, insistências, ameaças, julgamentos não abrem a ostra, que só se entrega depois de muita estrada pavimentada. É o balançar reprovador de cabeça que não se dá, é o comentário generoso que se faz do caso fictício, é o acolhimento sem relógio, é o quitute favorito fora de aniversário, é o abraço que não desbota. O amigo com acesso à dor do amigo é aquele que oferece as mãos como base para que o outro organize o novelo: é insuficiente e é muito, muito, muito.

O amor disponível nem sempre vai conseguir ensinar a nadar, mas em 100% das correntes vai servir de boia.

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