quinta-feira, 23 de março de 2017

A liberdade que é tua

O escritor português Vergílio Ferreira tem um texto lindo de negativas que assim começa: “Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros”.

Me calha demasiadamente, nos calha cada vez mais. Não é que a liberdade nos seja algo puramente individual e não deva levar em conta as crenças e orientações do grupo em que nos inserimos; o que fere é alguém ignorar o fato de que nosso compromisso com o grupo foi, também, livremente assumido na integridade de seu pacote, e por isso cabe a nós mesmos (se maiores de idade, cumpridores da lei e plenos de sanidade mental) nos administrar, e não a um feitor que nos mantenha em vigilância. Se casamos, se trabalhamos, se nos convertemos, o arbítrio de nossa lealdade é exclusivamente interno, diz respeito apenas a nós – no máximo a mais um ou dois diretamente envolvidos. Não há Inquisições, familiares, vizinhanças, direções, generais, presidências, rádio-corredor, rádio-Whats capazes de reger, todos juntos, uma consciência que seja. Nem capazes de diagnosticar se uma escolha de profissão, de país, de vestuário nos convém. Não há pressão exterior que nos saiba e nos molde; só a nós compete o sim, o abraço, o I do. Somos uma portinha que abre unicamente por dentro.

A portinha pode eventualmente, claro, ser chutada para escancarar-se – mas a liberdade em si já vai ter se evadido como um sopro por entre a violência, ou ter escorregado para trás de outra e outra e outra portinha, até ir morar num cofrezito de adamantium inviolável. A liberdade autêntica não cede, não morre, não sucumbe a comentários e fofocas, assédios e propinas, ameaças e barganhas. Por isso mesmo o livre verdadeiro é criatura de tamanho perigo: sabe lindamente os produtos de que não precisa, por mais que o encurralem e atormentem; é inarrastável para vícios, então não há nada que o desfoque nem abstinências que sirvam de chantagem; é flexível sem ser volúvel, é deliberadamente fiel, é inteligente de propósito. O livre conhece as melhores defesas contra ingerências em seus negócios (normalmente passam por papos retíssimos) e contra julgamentos temerários (em geral cruzam pela indiferença). O livre é sensato o bastante para não se constranger por ser livre: raciocina de tal forma que está imune à vergonha com que o manipulam. O livre não anda acorrentado à superfície das coisas. O livre enxerga.

A indefinível liberdade é o humano em estado de inteireza: talvez não faça o que quer (porque o querer é bruta flor carnívora que só pega em nossa terra de dentro), porém quer muito exatamente o que faz. Liberdade chega sempre com uma espécie compulsória de sabedoria.

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