quarta-feira, 8 de março de 2017

Sororidade

A gente digita a palavra e o Word sublinha, procura no Volp e não tem. É pena, porque embora esquisitinha na forma é danada de bonita no conteúdo, e merecia com um milhão de urgências estar na boca e na alma dos seres de língua portuguesa (e de todos os outros). So-ro-ri-da-de. Pra já, pro minuto anterior, pra anteontem.

Em inglês sempre foi comum, e desde meus tempos adolescentes de Brasas eu já sabia muito bem que sorority é o equivalente feminino da fraternity – aquele tipo de comunidade, normalmente universitária, de vida e residência. Quem já assistiu ao divertido Legalmente loira ou ao fofildo Universidade Monstros (ou a qualquer outra produção que inclua um bando de jovens sob a égide de duas ou três letras gregas) saca perfeitamente do que estou falando. Mas isso é nos lás; nos aquis, sororidade não designou alojamentos femininos, até onde sei, e sim essa coisa linda do sentimento de irmandade e empatia entre mulheres. A noção de que, por mais que tenhamos tido rumos e influências diferentes, somos todas guerreiras da mesma terra e vítimas das mesmas idiotices culturais – vítimas com altíssimo grau de resiliência mas fisicamente mais suscetíveis, mais expostas, e por isso necessitadas de um pacto de lealdade protetora. Carecidas de um abraço carinhosamente coletivo de gêmeas e parceiras.

Sororidade é esquecer a conversinha mole com que tentaram nos dividir para conquistar – aquela secular esparrela do “mulheres são competitivas, nunca são realmente amigas umas das outras” – e sustentar que sim, temos as mais imbatíveis fidelidades e as mais amorosas compreensões, talhadas na dor comum e nas alegrias camaradas. Sororidade é combinar senha com as gatas do coração para afugentar o paquera que ensaia cruzar os limites, ou mesmo trazer para junto, com intimidade de infância, a desconhecida que gritou com o olhar “estou na beirinha de uma cilada”. Sororidade é saber que estupro já é estupro independentemente de “consumado”, que pode acontecer também nas casas do Morumbi e sob o peso de uma aliança, que acontece inclusive em bordel ou com garotas de programa, que NINGUÉM jamais o deseja ou provoca a não ser o estuprador, e que TODAS as vítimas desse assassinato moral merecem a mesma incondicionalidade no respeito e no acolhimento. Sororidade é não ter omissão canalha, é se meter sim em briga de marido e mulher, é chamar a polícia e tocar trombone e organizar apitaço ultrainfernal a qualquer menção de violência nos arredores.

Sororidade é cuidar de travesti e transmulher com a exata preocupação e ternura que teríamos por nossa mãe ou filha. Sororidade é nunca, jamais, sob nenhuma hipótese declarar que uma sister faz algo “como se fosse homem” quando se quer elogiá-la (nem quando se quer – afetuosamente – xingá-la, porque sisters também se xingam. Com fofura). Sororidade é não se prender a críticas do look alheio, porque afinal ninguém é obrigado a seguir moda absolutamente nenhuma e, se a mina quer sair de cabelo moicano verde e roupa de plástico transparente, e se sente linda (ou sequer leva em consideração o estar linda), pessoa alguma tem nadíssima com isso, nem tem justificativa para o mais leve desrespeito. Sororidade é não explicar nenhum desassossego de (outra) mulher com TPM, é não desmerecer nenhuma aflição tachando de frescura, é não deixar de acatar a legitimidade de nenhum sentimento – mesmo sem concordar com ele –, é não pré-julgar, é não condenar, é não ignorar toda a carga colônio-machista que pesa sobre nós para não cair em sua rede maldita.

Sororidade é ser mulher tão de propósito que nem se cogita questionar o direito de alguém o ser na mesma medida, ou em sua medida própria, porque cada uma escolha sua posição dentro deste imenso e esplendoroso time. Em sumíssima: não é assim tão diferente da sorority de manas do outro hemisfério – já que, tão igualmente, não deixamos de morar dentro da fortaleza umas das outras. 

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