sábado, 25 de março de 2017

Versáteis

Eu estava lendo uma matéria divertida sobre absolutas inutilidades de infância, que teoricamente amávamos: as famigeradas minigarrafinhas de Coca-Cola (desconheço se alguém bebeu o conteúdo e viveu para contar), os pompons de elástico que só serviam para crianças possuídas fazerem guerrinha em sala, as molas coloridas cujo único propósito era dançar zuuuum para lá, zuuuum para cá – e descer as escadas engraçadamente –, as flores com look roqueiro ou jazzístico que rebolavam acompanhando o som local. Olhando para trás, fico absolutamente besta com a quantidade de brinquedos isentos de objetivo, que muitas vezes só tínhamos porque os outros tinham (desculpa para fazermos boa parte das besteiras da vida, aliás). Não se podia criar quase nada com esses produtos-bobagem, não havia muito gatilho para histórias, apenas repetições ou contemplações que nos entediavam a jato. A mim, bem pouco fã de mecanizações, o tédio vinha supersônico.

Honestissimamente: me encantava milzilhões de vezes mais ficar a manhã inteira no quintal, criando novelas e famílias com as folhas caídas dos oitis, do que me fazer acompanhar por brinquedos Estrela sem quê nem para quê. Eu me autonarrava enredos com fiapos de linha, com gotas d’água, com bonequinhas de papel por mim desenhadas e recortadas de caderninhos e, claro, com bonecos e afins que configuravam brinquedos “normais”. Mas os normais, para não serem enjeitados, tinham de mostrar serviço: não adiantava ficarem encastelados nas próprias funções, duros e inacessíveis, como bebês de porcelana e bonecos patinadores, engatinhadores, cantadores, bolhinha-de-sabonadores, que brincavam sozinhos. Os toys tinham de ser maleáveis para merecer atenção; e não digo “maleáveis” de macios, mas de versáteis – tematicamente flexíveis o suficiente para que o brincador, e não a brincatura, mandasse na parada. De que me adiantava um ser que só pudesse fazer papel de meu filho chorão, se eu não queria fingir de mãe e só esperava que as próprias bonecas casassem e tivessem filhos? Quanto me acrescentava um brinquedinho que já fosse determinado personagem, se eu só planejava insuflar em seus corpinhos meus próprios personagens? Claro que eu não saberia dimensionar naquela época, mas é certo que eu pretendia ter, com recursos de criança, uma das poucas formas de liberdade sem interferências.

Ainda sou a mesma brincadora de folhas. Já não saio saltitando pelo quintal (é pena), porém sigo me recusando ao que pré-escolheram. Detesto frases e expressões que vêm montadas de fábrica; abomino a previsibilidade dos conjuntos de roupas e bijus – qual a graça de não eleger seu time particular de itens, sua harmonia intransferível? –; nem looks de trabalho e saída escolho antes, para fugir à tirania até de mim mesma. Gosto de brincar de escolher, de passarinhar, de combinar o inicialmente incombinável, de me espantar com meu pedido no restaurante, de escapar das teclas e trilhas repetidas, de ter o pensamento docemente caótico e a agenda suavemente desorganizada. Curto nuances, listas randômicas, possibilidades, alternativas. Curto me assombrar até fazendo, às vezes, exatamente o que tinha imaginado.

Só não me ponham para dançar zuuuum para lá, zuuuum para cá, binária e esperavelmente. Não sou dessas que, para rebolar, aguardam autorização do som local. 

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