quarta-feira, 29 de março de 2017

O estado normal

“Aquilo que provamos quando estamos apaixonados talvez seja o nosso estado normal. O amor mostra ao homem como é que ele deveria ser sempre.” Não fui eu que disse, foi Anton Tchekhov, e sei que nele acreditarão todos. Eu, particularmente, acredito. Muitão se fala sobre qual seria o jeito melhor de conhecer uma criatura em sua verdade, em sua situação-padrão: alegam uns que o poder é que seria o cajado capaz de dividir o Mar Vermelho; outros juram que o sofrimento, sim, consegue separar exatinhamente os homens dos meninos. Mas eu prefiro estar no clubinho do tio Anton e crer que o amor, porque nosso auge, é nossa mais precisa definição. Nossa pedra filosofal.

Reflitamos. O amor já começa a nos distinguir pela base, uma vez que alguns tantos nunca nem estarão habilitados a senti-lo: nunca amarão parentes, amigos, parceiros, mascotes, ideais, profissões. Podem no máximo obcecar-se, fanatizar-se, viver um péssimo arremedo de amor – que, como todas as falsificações, traz somente dor de cabeça aos envolvidos, e daí para pior. Outros, apesar de viver em indigência mental, moral, material, conservam sempre a centelhinha e uma ou duas polegadas de terra fofa, para onde qualquer brecha pode ventar uma semente. Outros, ainda, têm suficiente amparo intelecto-emocional para compreender o amor como ideia e conceito, e no entanto o materializam limitado, morno, carregado de cismas e implicâncias e imadurezas, feito um espécime que gorou. Finalmente há os que entendem do assunto – os que veem a meta e se entregam, se multiplicam na busca, se fragmentam nos mais diferentes métodos de ternura por tudo que existe a ser amado. Os que estão plenamente cientes de que o amor é nossa missão e superpoder, o amor é nosso propósito e uniforme de trabalho, e tudo o mais é identidade secreta que não vai para a lápide porque não nos representa.

Nem é fundamental que se esteja in love romântico para que a profecia se cumpra (se assim não fosse, religiosos celibatários estariam excluídos da mágica humana, quando a coisa se dá muitíssimo ao contrário: normalmente é a humanidade inteira que eles levam ao altar). Pode ser amor de qualquer categoria, com o único requisito de ser legítimo; amor-muamba, amor pirata, que na verdade é uma porcaria de paixão ranhenta com a pilha estourada dentro, não vale. Como é que se sabe que é legítimo? A pessoa vira sua versão ISO 9000, vai-se polindo diamanticamente, tem ânsia de fazer certo e não de estar certa, tem fome de cuidar e não de querer. Aproxima-se do uso para o qual foi fabricada, e pelo ponto máximo de aproximação é que se delineia, assim como o atleta é marcado pelo seu recorde e não pelo que ficou abaixo do vértice; assim como o monte é lembrado pela altura e não pela base. Não somos nosso ensaio comunzinho: somos nossa melhor performance.

O amor é a vida cumprida. O que sobra é a mediocridade da espera.

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