quinta-feira, 16 de março de 2017

À espera


Estou absolutamente devastada de ternura com a história que acabei de ler – outra daquelas. Uma cozinheira chamada Ginger Prouse passava todos os dias pela esquina das ruas Nasa Road e El Camino Real (Kemah, Texas) e via um jovem sem-teto parado no mesmíssimo lugar, por três anos, independentemente dos maus humores do clima. Até que Ginger, consumida por velha dúvida, resolveu enfim abordar o rapaz e perguntar-lhe por que não deixava nunca o posto, por que não buscava abrigo que o guardasse do tempo. Victor Hubbard (este o nome do moço) disse que sua mãe o abandonara, que tinha um transtorno mental, mas casa não tinha; e que não se movia dali porque aguardava o retorno da mãe no último lugar onde a vira. Só nessa resposta eu já teria caído durinha ou ficado paralisada de comoção. Ginger não ficou.

Minha mais recente heroína criou uma página no Face contando a história de Victor, organizou um grupinho de voluntários que doaram roupas ao sem-teto e lavaram as dele – além de lhe emprestarem banheiros, chuveiros e tempo destinado a lhe preparar quitutes –, carregou ela própria o rapaz para dormir em sua casa, levou-o ao médico especializado em saúde mental, arrecadou dinheiro online para que o amigo se restabelecesse (mais de 15 mil dólares já foram angariados), providenciou trabalho para ele como seu ajudante de cozinha. E o toque mais fofíssimo: por causa das publicações no Face, Victor conseguiu entrar em contato com a família e reencontrar a mãe, embora o foco de sua afeição tenha muito justamente se voltado para a amiga Ginger – a quem considera uma bênção que salvou sua vida. Impossível discordar.

Igualmente impossível não acolher Ginger no peito como pessoa nossa, mesmo ao longe, separadas por léguas de sangue, quilômetros de genes. Abençoados os anjos que olham e veem o(s) que todo dia olhamos e não vemos. O mais bonito é que a sra. Prouse escapou a nosso método preguiçoso de só ajudar o que se move, o que busca, o que pede, o que estende a mão; Ginger se fez chegar para quem apenas esperava, porque os que apenas esperam pode ser que o façam por desconhecerem qualquer começo, qualquer alternativa. Não é que Victor se desejasse na imobilidade de não procurar emprego ou casa, simplesmente não tinha estrada, não tinha fio de meada a que se agarrar, tinha de sua somente a memória do que perdera; sua posse não incluía um futuro que não sabia que acharia, o passado era seu único endereço. Mas há também (tem de haver, senão o mundo pode definitivamente abrir falência) asinhas que velam os perdidos, portas que convidam os que não batem, zelos que encontram os que não procuram. Tem de haver: para sapatear na cara do pragmatismo que o amor não é meritocrático, não é funcional nem capitalista nem recebe currículo, não faz prova de admissão nem exige dinheiro de ingresso, não checa antecedentes nem justifica a indiferença mandando vagabundo trabalhar. Amor é o milagre gratuito que nos confunde e desmoraliza, é comunista, barbudo, miçangueiro, desordeiro, súbito, implacavelmente livre e pouco dado a cartões de ponto, irritantemente desinteressado, ilógico, debochado de nossas lógicas, regras e melindres. Amor é delicado com idiossincrasias mas impaciente com burocracias, e se recusa a sentar esperando quando se sabe esperado.

Quem se precisa amado, tão urgentemente que dói em todas as fomes, é justamente quem tem a prerrogativa da espera. Aqueles que não têm cacife para exigir do outro o fim de uma paralisia gêmea da nossa – somos exatamente nós.

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