terça-feira, 9 de novembro de 2021

Uma espécie de paladar


Tão linda a metáfora de Susan Sontag: "A inteligência é uma espécie de paladar que nos dá a capacidade de saborear ideias". Ligação apropriadíssima; assim como aqueles que têm o dom do sabor e da cozinha sabem em parte intuitiva, em parte estudadamente as texturas e substâncias que se combinam, que se completam, que se repelem – assim também a inteligência global elabora e tempera ideias num caldeirão. Umas tantas misturas se mostram desaconselháveis por instinto e olfato, outras demandam duas ou três receitas desandadas antes de se comprovarem incompatíveis; e há ainda a coluna do meio, habitada por matérias que em CERTAS condições trabalham deliciosamente juntas, mas que com um grau a mais ou um mililitro a menos destroem qualquer chance de empratamento pacífico.

Acho espetaculares as ousadias paladáricas de gente que – nos MasterChefs da vida – simplesmente é tomada pela certeza de que o toque pedido por aquela sobremesa é um pouco de bacon, o sabor ideal para o sorvete da vez é tomate com azeite, a carne vai ficar de comer rezando (no melhor sentido) sob uma grossa calda de chocolate. Por inegociável preguiça, não cozinho, porém me disponho de coração quase inteiramente aberto a provar inobviedades; excluo coisas nojentamente moles, estragadas ou vivas, e fora isso podemos conversar, ainda que a conversa envolva algumas despreferências (odeio palmito, por exemplo, e no entanto não me recusaria a provar um espaguete de pupunha ou algo semelhante, já que o aspecto em si não me repugnaria). Com a mesma mobilidade de experimentar paladares, tamos aí para aceitar novas argamassas de pensamento – sendo essencial, naturalmente, que nada na mistura se esmolengue por falta de lógica, nada indique podridões na estrutura, nada se mova estranhamente onde não deve. Se tem chance de se chegar a uma experiência acrescentante, tem jogo.

A comparação paladar/pensamento me é mais particularmente cara porque desde sempre me pareceu que palavras são mastigáveis, que algumas leituras são salivantes, outras engolíveis num gole. Por mero recreio nunca li os textos mais secos, digamos; quero-os abundantes, generosos, caldosos, claro que não salgados de enfartar nem açucarados de doer no dente, muito menos ácidos de esfaquear, mas temperados que ressoem, que acarinhem. Ler e pensar Machado não tem o gosto de Guimarães Rosa, que não tem o de Cecília, que não tem o de George Sand, que não tem o de Alencar; não importa, é o que se espera – também não quereríamos nem um pouco que uma boa feijoada se parecesse com um bom sonho de padaria; o fundamental é que, feijoada ou sonho, o texto mentalmente lido se estenda cheio e suculento, lembrável, rico e suficiente ao menos para a jornada a que se propõe. Não precisa ser a digestão duma vida inteira; basta, frequentemente, ser feito inteiro para a maré em que a inteligência o consome.

Bem-vindo seja o prato que atiça a fome.

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