quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Em torno dela

17 de novembro de 2021 marcaria o centenário do pintor dinamarquês Albert Bertelsen, que infelizmente voou-se com uma precocidade de dois anos, em 2019. Era particularíssimo nas tintas, pode-se dizer que algo naïf, apaixonado por paisagens nórdicas, tons verdes e azulados, construções enormes em contraposição a humaninhos miúdos, pessoas de olhinhos minúsculos e caídos (e narizes grandes, bolotos). Muitas de suas obras me comovem pelas características singulares e às vezes quase fofas, apesar da melancolia chuvosa; mas, se destaquei acima a View Stampesvej/Vejle (de 1952), não foi tanto pelo Bertelsen específico, e sim pela semifuga ao que é típico do autor: a mulher de vermelho que se sobressai completamente entre tonalidades frias e seres de roupas escuras – essa me ganhou de todo assim que meus olhos, com ela e o bebê, desceram a ladeira da cidadezinha.

Veem que beleza o artista plantou debaixo de nossas vistas? Na rua de céu cinzento e sol esbranquiçado, aparentemente frio (todos os transeuntes parecem bastante cobertos), a mãe que empurra o carrinho é o ponto nevrálgico de luz e calor. Apenas o telhado da casa – fora um esgar amarronzado da vegetação – se mostra capaz de fazer dobradinha visual com a personagem, como se a tela sussurrasse: percebam que aparentados são os aconchegos do lar e da mulher; ainda assim, tentem cobrir com a mão a passeadora de vermelho e verão como a quentura da obra se esvai, e praticamente só resta o ar que sentimos nordicamente gelado apesar do solzito. A alma é ela, a mulher, e tudo se constrói em torno dela – única dos humanos visíveis, por sinal, que se posiciona de frente para nós, enquanto os demais ou se afastam cabisbaixos, ou ficam num meio-termo penumbroso e indefinido, frustrando o que quer que tentemos de interação.

Só a Mulher, a Mãe, nos encara sem olhos; sua pele se realça pelo viço rosado, vivo, que nos outros não há nem se adivinha. É a figura humana por excelência, a figura exclusiva que se aproxima em oposição aos outros (homens, todos?), os que dão as costas ou nos brindam com sua perfeita indiferença. E não é sozinha que ela se aproxima; traz o filho para nós, para o mundo, em lugar de levá-lo do mundo e escondê-lo solenemente em suas alturas particulares, em seu refúgio provavelmente aninhado no topo da ladeira (para onde o sujeito que caminha do mesmo lado está retornando com as necessárias compritchas). Pois não é – ou não deveria ser – propríssimo de mãe desacomodar do alto o seu fruto, para que venha por sua vez frutificar em terra real e firme? Venha, venha, Mulher de Vermelho, trazendo com quase palpável alegria o filho que é um ponto de luz, a despeito de estar onde só deveria haver sombra; embora seja imensamente cedo para o frutinho brotar, não é cedo para banhar-se de realidade e se afazer aos ares que o aguardam.

Enquanto os da Mulher o guardam.

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