domingo, 14 de novembro de 2021

Coach gravatinha


Wagner Moura foi amassado de críticas após comer camarão com o pessoal do MTST, e acredito que ninguém tenha comentado o caso mais brilhantemente que o ator e apresentador Paulo Vieira, no Twitter:

"Sobre comer camarão (seco) em movimentos populares: com o meu primeiro cachê em mãos, entrei no restaurante mais caro da minha cidade pra comer o prato de camarão que todos os ricos comentavam. Levei meu irmão e minha mãe, como em tudo. Entramos e gastei todo meu dinheiro lá.

Lembro que meus amigos mais ricos (pq eu sempre circulei nesses mundos) me julgaram com coachismos do tipo "por que não juntou pra mudar de vida?"; quase falavam isso com um camarão na boca. Quase dava pra sentir o bafo de camarão vindo de quem me dizia que aquilo não era pra mim.

Ricos gostam de controlar tudo, mas eles se empenham especialmente em controlar/delimitar/diminuir o tamanho do mundo a ser conquistado por cada indivíduo: A VONTADE DE CADA UM, O DESEJO, A AMBIÇÃO.

Dividir a comida eles não querem, mas querem mandar até nas nossas fomes."

Não resta muito a discorrer após esse socociológico tão lindamente dado por Vieira – aparente herdeiro da retórica de seu semixará, padre Antônio – na cara de cada um de nós. Mesmo nós, sim, que não somos ricos e estamos ABSURDAMENTE longe disso (estando em consequência absurdamente mais próximos da pobreza), pegamos e reproduzimos essa mania insuportável dos bambambãs da grana, esse falso paternalismo/moralismo que se sente no direito de tutelar a vida alheia com uma expressão mista de sabedoria de mundo e desprezo, de soberba e condescendência; um jeitinho todo historicamente edificado, todo mentirosamente edificante de dizer "ponha-se no seu lugar". São resquícios de tantos, tantos séculos duma pirâmide social esmagante, desde os primórdios acachapante em sua violência colonizadora e, ao mesmo tempo, costurada com uma linha de cordialidade cínica, que tudo transforma (ou finge transformar) em afetos, para o bem e para o mal – reiteradamente para o mal vestido de "é para o seu bem".

É para o seu bem, repetem com constância alarmante os que aculturam na marra, os que passam que nem trator sobre quereres e fazeres e saberes 100% desprecisados de tutoria ou tutela. 521 anos determinando o que é para o seu bem e o que não é para o seu bico; limitando, acorrentando, o mais possivelmente domesticando autonomias antes que elas (sei lá) cismem de cursar universidades em vez de faxinar a casa de seus generosíssimos tutores, tenham a estranha ideia de dedicar mais tempo aos próprios filhos e nenhum aos dos patrões, sonhem gastar seu dinheiro em outros países e não fomentar a economia no pequeno Cachoeiro do rei Roberto. 521 anos dessa palhaçada, desse whitemansplaining metendo ingerência em outras vidas e parasitando desejos para que desde o berço não cresçam, não queiram, só caibam na forma do cercadinho – ou seja, mais de meio milênio fazendo profecias autorrealizadoras e "preparando" magnanimamente as almas apadrinhadas para uma "realidade" que ele mesmo criou. Em nome do bem do pobre, educa-se o pobre para não aspirar ao que se lhe rouba. Sob a odienta esparrela de dar conselhos úteis, quem tem recomenda a quem não tem que não queira ter, enquanto é o primeiro a providenciar que ninguém mais tenha.

Peço apenas ao querido Paulo Vieira a licença de um acréscimo: justamente por não quererem dividir a comida, eu diria, é que querem mandar até nas fomes que não lhes dizem respeito. O paternalismo desvelado dos grandes não é senão um autotratamento de papaizinho, um autocuidado, um cão-de-guardismo na porta da despensa para assegurar o próprio caviar e deixar do lado de fora a farinata destinada aos subalternos; assegurar a própria portaria revestida a carrara e deixar a entrada de serviço como único acesso dos servidores. Preocupações compungidíssimas com o dinheiro que o pobre "alá, deveria estar gastando em comida e está gastando em cerveja" (como se pessoas lúcidas e maiores de idade não fossem capazes de equilibrar seu orçamento sem um coach gravatinha), condenações de fundo me-di-e-val ao riso que puxa alegria que puxa autoestima e confiança (corpos tristes são tradicionalmente mais controláveis), participações teatrais em campanhas de doação SEM QUE, com isso, se apoiem também políticas públicas que um dia talvez viessem a tornar desnecessárias as doações: tudo é parte do show dos que nunca doam para distribuir – doam para se apropriar.

Doam para que o pobre assim adquirido não exija a devolução de seu lugar.

Nenhum comentário: