domingo, 28 de novembro de 2021

No espelho somos nós


Completa-se, neste 28 de novembro, um ano todinho do falecimento de Gelson Radaelli, artista plástico gaúcho de projeção grandona. O tocante é que apenas duas semanas separaram o encerramento de uma sua exposição – No espelho não sou eu, inteira de pinturas realizadas na quarentena – e sua própria morte, sempre subitíssima quando de ataque cardíaco. Foi muito, muito intensa a última mostra, trabalhada em cores fortes, soluções dramáticas e múltiplas representações do descompasso entre o ser e o mundo, como no quadro que acima reproduzo e que me atingiu mais que todos os outramente vistos.

Não lhe sei o título, infelizmente; mas qualquer que seja o nome, se algum foi dado ou pensado, mora dentro desse espírito doloroso, geral – No espelho não sou eu. Ainda que não haja rosto na figura feminina, toda a linguagem corporal exala suficientemente o desconforto de não se ver ou de não se permitir acolhida, de não identificar irmandade onde quer que se encontre, embora (ou talvez porque) não se encontre cercada de humanidade, e sim duma natureza que percebe como ameaçadora e a quem rejeita. Quem o diz não sou eu, é o próprio conceito dum módulo da mostra de Radaelli, verbalizado na matéria de Eleone Prestes melhor do que eu poderia tentá-lo: "Nesses quadros [do ato O Ser e a Natureza] existe um não diálogo entre a figura humana e a mãe Gaia. O ser está sempre de costas para os elementos naturais, refletindo e pensando somente nas suas coisas, em suas conquistas, no dinheiro, no prazer e no poder, esquecendo – e agredindo – a força que é a essência da vida e responsável pelo equilíbrio do planeta".

O que mais achei eloquente na tela da mulher verde foi precisamente esse contraste; ela, que recusa a mãe Gaia ou se sente por esta recusada, assume justo a cor que geralmente se atribui ao natural, como se sua clara flexão sobre o lhe-pertencente umbigo a fizesse considerar que ela sim, embaixadora da humanidade, tem prioridade sobre a natureza, enquanto a natureza é o "perigo vermelho" que insiste em responder com seus degelos, aquecimentos, secas, enchentes, maremotos às malvadezas sofridas: AUDÁCIA. Para maior dramaticidade, o uso de cores complementares na paleta, já que verde é a soma das outras duas primárias que não vermelho; ou seja – gente e mundo são tão complementares quanto opostos, e, mesmo que grande parte do que somos negue o pertencimento, não deixamos por isso de ser inerentemente naturais (vide a ruivice que escorre pelo corpo da mulher e a assinala, a despeito de sua percepção e vontade, como um pedaço da Gaia rejeitada). É aparentemente noite na tela, e noite permanecerá durante nosso estado de negação: viramos as costas ao que está seco e não assumimos que é nosso, que vive e morre em nós o chão que sangra.

No espelho não sou eu é o que dizemos para espichar a morte; a vida ruma todos no mesmo barco, à mesma praia. Nós e Gaia.

Um comentário:

Adriane Garcia disse...

Suas crônicas são muito bonitas