terça-feira, 16 de novembro de 2021

As armas e os não assinalados


Assistindo a um filmalhaço como Marighella (VEJAM, por motivos de OBRIGATÓRIO), que marcou nosso retorno cuidadoso ao cinema cerca de 20 meses após a última visita à sala escura, não tenho como não me perguntar: se houvesse vivido na década de 60, por acaso eu teria desenvolvido a coragem necessária para participar de um grupo como o do protagonista? Estaria disposta a arriscar vida, família, segurança, estabilidade, paz, silêncio em nome de mais do que uma ideologia – em nome duma necessidade prementíssima, duma urgência de nível (inter)nacional? Infelizmente não posso crê-lo; e não só pela obviedade explicativa de gostar de sossego ou de temer prisão e tortura, embora sejam verdades para mim e todos, mas também (e fortemente) por ser inimiga das armas até a última célula da última víscera, o que costuma ser péssimo currículo para um postulante à luta armada. Não se trata de desprezo pelo quê, o dilacerante é o como; todo o respeito e gratidão deste mundo que eu possa ter – e tenho – pelos guerreiros que peitaram a ditadura, toda a veneração pela força e lealdade de suas relações, tudo é ou seria imbastante para me mover às armas, para me fazer sequer tocar numa delas. Eu destruiria mil vezes esses objetos de morte do planeta inteiro antes de remotamente empunhar um só.

Sendo o ser humano complexo até a medula, no entanto, meu asco pelas armas não significa que eu não compreenda de coração as decisões de Marigha e seus companheiros; eu as compreendo, ainda quando não as apoio, e mui provavelmente (vivesse eu na época) acabaria assessorando o grupo à moda do soldado de Até o último homem, que por convicções religiosas jamais utilizava armamentos, mas não deixava por isso de ser fundamental no cuidado com os parças em plena loucura de guerra. Claro, não pretendo longinquamente supor que eu viria a ser fundamental, com certeza nem leeeevemente importante; acredito, porém, que talvez pudesse prestar servicitos periféricos como esconder algo ou alguéns, enfermeirar feridos, distribuir panfletos na maciota. Não sou uma peitadora, sou um bichinho da sombra – só conseguiria ser útil trabalhando na encolha e com um sorriso inocentíssimo à flor do sol; na qualidade de bichinho enviesado, oblíquo, é que serviria como leva-e-traz insuspeito, metida num vestido rodado da década anterior enquanto saltitasse recados para lá e para cá, com ar de normalista ou dona de casa que nem aí pra Hora do Brasil.

Não, não sou talhada para o embate – mas o sou 874% a menos para o fascismo, o que me impediria a inação completa tanto quanto as tendências naturais me impedem o arremesso de uma bomba numa embaixada. Felizmente há o backstage, a sempre possível resistência de suporte aos que só se reconhecem no front; é um modo mui menos heroico, certamente, e ainda assim palpável (e eventualmente ajudoso) de marcar presença, posição. Essencial é disponibilizar para a lavoura da verdade ao menos o pouco que se tem.

E não soltar a mão de ninguém.

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