quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Intervalos de lucidez


Ambrose Bierce, escritor norte-americano de pena reconhecidamente ferina, definiu o lazer como "intervalos de lucidez numa vida desregrada", o que prova que um satírico pode falar absurdamente sério quando lhe dá na veneta. Porque Bierce teve mira robin-hoodica, convenhamos, e cada vez mais sua definição marota se aplica (por extensão) ao universo corporativo: as ideias infames de "trabalhar enquanto eles dormem", a escravidão do celular ligado ao lado do travesseiro, o medo furioso de tirar férias e soar substituível, o horário descompensado que não cruza com o dos filhos, o do marido, o da esposa – isso sim é vida desregrada, insana, inviável, doida de marré de si, que só pode acabar em enfarte ou gastrite (o que vier primeiro). Ou tem lá algum cabimento entregar-se a uma espécie de martírio sem religião, não por arraigados princípios ou pela salvação da própria alma, e sim pela salvação de cifrões e cifrões para a conta de chefes que dormem per-fei-ta-men-te em lençóis egípcios enquanto outros trabalham?

"Credo, também não é assim, não faça as coisas parecerem tão simplórias." É assim sim. A meiuca das coisas pode não ser nada simplória, concordo, porém o que mais há são trâmites complexos para se atingir o simples: o máximo para mim, o mínimo para você. Então não existe desregramento nessa máquina tão bem azeitada de produzir condescendência em escravizar-se, já que não se permite mais à máquina a produção de escravos? Na falta de legislação que abone a compra de pessoas, romantiza-se a tal ponto sua autodoação que os antigos forçados por um sistema perverso se remasterizam em cúmplices de outro sistema perverso – não cúmplices ativos e conscientes, mas instrumentos enfeitiçados, persuadidos, de uma lógica doentia de acumulação por muito poucos viabilizada pelo sacrifício de muitos. Se não se consegue ver aí um completo desconcerto dum mundo que "funciona" para, talvez, uns 2 ou 3% da população humana, realmente não concebo o que mereceria ser chamado de desajuste.

Somente as horas de lazer verdadeiro – por verdadeiro entenda-se: distensionado, com celular apagadíssimo, nenhuma possibilidade de urgência no emprego a não ser que se tenha cursado Medicina – providenciam que a identidade esgarçada durante os expedientes comece a juntar os cacos, reunir provas de que um bolo de dimensões do eu precisa conviver civilizadamente para montar um eu com saúde. Um eu com saúde, se pai ou mãe, carece do tempo de brincar na grama com os filhos, inventar história doida, fazer carrinho de caixa vazia, comentar o último da Pixar, discutir o futuro da Marvel; um eu com saúde necessita de manhãs de sábado para assistir a reformas no Discovery Home & Health ou correr no futebol, folhear bobagem ou Foucault, testar receita da Ana Maria ou o drink que apareceu na série, ouvir Beethoven ou Titãs ou Emicida. Um eu com saúde vai à praia, ao teatro, ao cinema, ao barzinho, ao baile, à Bienal, ao Méqui, ao bistrô, ao pagode, ao museu, e vai com vontade – por vontade; não é dirigido por conveniências profissionais nos instantes teoricamente indedicados à profissão; não é teleguiado por quereres alheios que determinam com quem, onde, quando convém estar, quais relações cultivar num eterno LinkedIn. Eus saudáveis atingem, na desobrigação, a lucidez do autocontato, demoram-se nos braços de si mesmos para conhecer-se, não se perdem de si no dédalo que a peleja lhes constrói.

Aprendem a ser seu próprio herói.

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