segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O amor é uma beterraba no prato


Gosto muito, pela intensa verdade que exprime, duma frase de Anne Sophie Soymonof – ou Madame Swetchine, escritora russa nascida como Sofia Petrovna Soymonova há exatinhos 239 anos: "Amar profundamente em uma direção nos torna mais amáveis em todas as outras". Têm vocês também essa impressão? Quando estamos de alguma forma enamorados, agudamente enamorados com muito mais generosidade que dor (digo "generosidade", e não "felicidade", porque um amor pode ser plenamente incorrespondido e ainda assim edificante), a tendência é que se borrem as fronteiras entre o que é amado e o que não é, ou mais especificamente: entre o eu que ama e o eu que não. O amor é uma beterraba no prato que tudo contamina, que avermelha todo o resto, que tinge o que mais carregamos por sangrar e derramar-se de suculência; nada que combine ou que não combine escapa-lhe do sumo corante e adoçador.

A criatura que ama com verdade alegre ou melancólica deixa fatalmente que o amor suba à cabine de controle, que sua essência ganhe o duto de ventilação e em toda parte se espalhe, e a todo canto perfume. O amor é indiscreto não só porque vazante nos olhos vagos, nos ares distraídos, nas gagueiras, nos sorrisos basbaques, mas também porque multipliqueiro; de repente se recebe o impulso de ser terno com o ascensorista, descaloteiro com os amigos, paciente com os desafetos, entusiasmado nas caridades – e não exclusivamente em nome do contentamento que se sente, que como dissemos nem contentamento é muitas vezes; deseja-se, não raro, simplesmente ser bom, ser melhor ao menos. Deseja-se ora com, ora sem consciência elevar a própria dignidade ao nível do sentimento dominante, elevar-se ao nível da pessoa adorada, frequentemente merecê-la. É muito e constantemente isto: quer-se MERECER aquele ou aquela a quem se ama, não ter de corar ante o espelho com o peito doendo de impossível.

O amor, se amor de fato, nos civiliza. Nos força a alguns necessários passos para não envergonhar o filho, não chocá-lo ou perdê-lo; nos veda atitudes que desonrem a lealdade aprendida dos pais; traz à tona a compreensão humana que nos habilita para os amigos; especialmente nos apura para o recebimento do outro, seja no conquistá-lo ou no mantê-lo, no agradar-lhe ou no ajudá-lo, no recompensá-lo ou no entrar em quitação com a sorte pela felicidade recebida. Por amar profundamente é que somos abençoados com o passo delicado da urgência, o tato sempre suspirante diante do que parece eternamente frágil; movemo-nos pela delícia de ter e a ânsia impotente de continuar tendo – ânsia tão impotente que sermos bons, irrepreensíveis, nos dá a necessária impressão de potência. É a parte que nos cabe no latifúndio impalpável do amor: atônitos de não podermos criá-lo, pomo-nos a cultivá-lo, como quem paga com trabalho voluntário uma dívida eterna que algo em nós pressente.

O amor nos diz o que a preguiça nos mente.

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