segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Quantos nunca


Ainda me rasga o coração quando lembro a cena do filme Coringa na qual Arthur Fleck fala com sua mãe no hospital – e não pelo motivo que talvez imaginem, ou OS motivos, já que as pessoas que assistiram e as que não assistiram ao longa podem ter acabado de deduzir razões perfeitamente distintas, até opostas. O que me desassossega o peito quando penso na cena é a reação de Arthur ao fato de sua mãe chamá-lo constantemente de Happy, costume vindo da infância do garoto, que em vez de chorar (e SOBRAVAM justificativas para chorar Atlânticos) estava sempre rindo: "Feliz... Eu nunca fui feliz nem por um minuto, na m**** da minha vida inteira". Ouch. Há dois anos vi Coringa pela primeira vez e há dois anos tenho a incicatriz dessa frase dolorosa – não apenas pelo personagem, que logo acolhi em minha galeria amada de desamados, mas pelo calafrio de imaginar quantos não-personagens ele representa, quantos corações factuais podem repetir um script que não deveria ter sido nunca factual.

Dá quase vertigem (em verdade, deixemos de lado o "quase") suspeitar a existência de milhões de flecks, variantes infinitas que evocam a célebre abertura de Anna Karenina: "Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada qual à sua maneira". Que triste coleção de maneiras haverá para ser infeliz, e não simplesmente ser infeliz – ter sido infeliz 100% do tempo? São biografias em que, ao menos no período de consciência, não houve sequer um instante de carícia, afeto, colo; não houve um intervalo de brisa, abraço, alívio; não houve uma cantiga, uma boneca, um passeio, um cachorro, um futebol, um Natal. Para JAMAIS terem sido felizes (ou assim o julgarem, o que considero de razoável equivalência), pessoas não podem ter tido o olhar e o toque de familiares amorosos nem por um dia, não podem ter brincado esquecidamente de tudo nem por uma hora, não podem ter se aferrado a um sonho nem por dez minutos, não podem ter beijado alguém profundamente adorado nem por poucos segundos. Nada que tenha embalsamado de azul o peito, nada, nadíssima; um deserto somente, por todos os lados – de rejeição, de pobreza, de fome, de frio, de doença, de cansaço, de guerra, de cimento. Uma solitária perpétua. Um inferno.

Sim, os tentáculos da frase me assombram; quero e não quero me insinuar em todas as zonas subterrâneas, minas de carvão, áreas de escravidão e tortura e bombardeio, saaras e presídios, becos e brejos, hospitais e manicômios – quero e não quero fazer esse recenseamento absurdamente sofrido: quantas e quais pessoas do planeta nunca, nunca, nunca foram felizes? Especialmente (não porque sejam criaturas "mais importantes" que as outras, é óbvio, mas apenas porque ajustam nosso foco para muito mais perto): quantas e quais haverá que, mesmo aparentemente fora duma situação extrema no físico e no geográfico, vivem em aridez interna de potência similar? quantos Arthurs Flecks a quem damos bom-dia no elevador nos sorriem vazios da chance de que o dia seja bom? quantos sofrem ou sofreram violências que sequer concebemos? quantos mantêm relações – ou são nelas mantidos – que configuram essencialmente o horror, o horror? quantos carregam uma depressão, inclusive em modalidade crônica, que os impede de vislumbrar quaisquer alternativas? quaaaantos se veem atrelados a empregos desesperadores? quantos, sobretudo, nunca foram amados?

Fico nas perguntas; não sei se eu suportaria as respostas. Há muito mais dores entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã covardia.

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