domingo, 7 de novembro de 2021

Onde nos perdemos


"Onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação?" Isso disse T. S. Eliot (ou ao menos lhe é atribuído), e olhem que o autor falecido em 1965 chegou nem perto de nossa era digital. Posso imaginar a consternação de Eliot se houvesse presenciado este interessantíssimo momento de histeria de dados, muitos dados, imensidões imediatas de dados que nos afogam a sanidade imergindo-nos no excesso.

Foi, acredito, o maior golpe de mestre da história humana, depois da roda literal: a rodagem ensandecida de detalhes ridículos, milmiudezas discrepantes, bafafás, irrelevâncias, tão a torto e tão pouco a direito que o que era audição vira zumbido, o que era visão dispara em vertigem. Combinemos que não se controla a curiosidade de nossa espécie – se estamos aqui vacinados e sobreviventes, por sinal, devemos incalculavelmente a ela –, e convenhamos: todas as tentativas de amordaçar a fera pela seca e pela restrição falham miseravelmente. Se não se fala, e não se comenta, e se cochicha, e se oculta, e os livros são vedados, e os arquivos são enterrados, e a instrução é proibida, pode crer que a sede e a fome dos nossos se concentra apaixonada em degustar longamente tudo que lhe caia sob os olhos, e a busca se torna questão de prioridade e honra; pessoas invadem localizações virtuais e físicas, passam bilhetes, escamoteiam cartas, criam códigos, espreitam conversas, leem escondidas em plena madruga, transmitem na encolha o que aprenderam e provam que NÃO HÁ o que não se descubra debaixo do sol. Inquisição, perseguição política, carimbo de censura, lista de obras condenadas, fogueira de livro e de gente – nadinha, nadica forma um dique inexpugnável à propensão humana de saber; o ser humano quer saber, o ser humano cedo ou tarde saberá. Os maiores detentores da grana, dos meios de produção e do interesse em dominar foram percebendo o óbvio, e ademais não tinham como não ver que, com a escalada da tecnologia, pensar em simplesmente esconder se ia tornando mais risível e obsoleto. Que fazer então? continuar escondendo – mas não numa casinha iluminada em meio a um deserto de dados, e sim numa casinha iluminada em meio a milhões, bilhões de casinhas iluminadas por dados que não têm a mais liliputiana importância.

Que os historiadores não me esganem pela ligeireza do "resumo", nem os filósofos e sociólogos queiram meu fígado por achar que eu poderia defender o conta-gotismo de informações. Pelamor, nunca: sou pela nudez forte da verdade e tenho ódio profundo de escamoteamentos, a não ser que seja para fazer os próprios dominadores de trouxas (ou de MAIS trouxas, porque bruxos é que eles não são). Mas é fato, não, queridos? cientes de que os serumaninhos a serem controlados vão mesmo querer saber, e de que só a educação bem administrada pode ajudar no processo de digerir informação em conhecimento e conhecimento em sabedoria, os exploradores de gente fazem o diabo para boicotar a educação em todos os âmbitos – no escolar, exaurindo e difamando professores; no doméstico, reduzindo ao máximo o tempo de que os pais dispõem para os filhos –, ao mesmo tempo que despejam ENXURRADAS de bobagem sobre cabeças que não conseguirão metabolizá-las. E, claro, não bastam as sub-informações de vexaminosa irrelevância (quem ficou com quem, quem usou bolsa assinada por quem de qual valor, quem estava sem calcinha onde, quem estacionou o carro na esquina de qual shopping), é necessário inocular também o ácido das contrainformações delirantes, absurdas, conspiratórias, desestabilizadoras. Que melhor método para, simultaneamente, ludibriar a fome dos cérebros e asfixiá-los de indigestão? O holograma da verdade custa comparativamente pouquíssimo, e distrai muito mais da verdade mesma do que o mero desejo de sua imagem real.

Nada demora mais a cegueira nas gentes do que a arraigada convicção de já estar vendo.

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