terça-feira, 2 de novembro de 2021

Portadores de nuvens


Creiam, não é nem pelo fato de o pop-artista italiano Tano Festa ter nascido num 2 de novembro (de 1938) que me ocorreu mencionar uma sua obra neste Dia de Finados; apaixonei-me simplesmente pela candura e simbologia da escultura que veem acima, e só depois me dei conta da perfeitíssima coincidência com os imaginários 83 anos do pintor/escultor – sim, infelizmente imaginários, já que Festa faleceu na excessiva precocidade dos 50. Se já me comoveu incrivelmente a obra em si, chamada Monumento a um poeta morto, que dirá este plus: seu próprio autor configura um poeta (da imagem) morto infelizmente, mas significativamente nascido, sobretudo, numa data em que somente o crepúsculo costuma estar em foco, como quem diz que arte e criação são sempre inícios. Travessias. Janelas.

Aliás, que amor renitente o de Tano Festa por janelas! Janelas, persianas, nuvenzinhas – as adoráveis nuvenzinhas que tanto me seduziram no Monumento, e que porém estão longe de ser exclusivas da peça; a torto e a direito o artista semeava nuvens, mesmo em situação de natureza (hum) morta. Ora, que há de menos morto que as nuvens? e o que há, quase automaticamente, de mais poético? Nuvens mudam livrezinhas de lugar e de forma, são líquidas e parecem gasosas, geram composições de dar inveja a Michelangelo, apenas sendo; são brancas, cinza, rosa, fofas, afiladas, craqueladas, únicas, coletivas – e eternamente à beira de: na margem da precipitação; em véspera. Nuvens suavizam, nuvens trovejam, umedecem ou varrem, garoam ou desgraçam; mas é bem do quê e de onde que lhes vem a matéria? Vem cá de baixo, da mesma terra que sobrevoam. Direitinho que nem poetas, nuvens são as versões flutuantes do que anda pela superfície, do que o mundo evapora.

Cecília não se dizia "pastora de nuvens"? Não eram nossos simbolistas apelidados "nefelibatas"? É irresistível, inevitável juntar poesia ao nuvenzismo, e a obra-homenagem do escultor italiano só faz reconfirmá-lo: poetas são sólidos recheados de céu e flutuância, seres andantes portadores de nuvens, mesmo quando tombam em definitivo. Ainda que tombem (é a escultura de Tano Festa que tão bem nos conta) e atravessem a janela entre o ser daqui e o não ser, jamais deixam de sê-lo; suas nuvens já solidificadas em escrita os fincam numa terra à qual apenas semipertencem. Nem sempre é escrita, concordo – poesia se materializa também em cor, som, perfume, contorno, arquitetura –, mas de qualquer modo o que fica é um eterno resquício que fertiliza, que planta outros poetas, que deixa o chão muito adubado para brotar rumo a janelas várias.

Criação não se acaba, passa somente o cetro: a natureza da vida é não ter cansaço de se alastrar.

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