sábado, 13 de novembro de 2021

Objetos que gritam


E Clarice Lispector?, que meteu um: "Se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita". Menino, mas é mesmo isso, querendo ou não somos feitos objetos diretos e indiretos por meia dúzia de sujeitos; embora muitos, podemos pouco – temos pouco –, não somos donos dos mui concentrados recursos que dão acesso à ciência controladora de opiniões, não possuímos meios de produção, podemos no máximo possuir alguns produtos e (com sorte) ter carteira assinada para produzir outros tantos. Que nos resta, se certamente um meteoro comunista não despencará da abóbada para realinhar a órbita econômica do planeta? Resta gritar.

Resta berrar com todas as fúrias: não somos resto, não aceitamos sê-lo, estamos conscientes de que desejam – e de quem deseja – que o sejamos. Resta botar a boca em tubas, trombones e todos os sopráveis barulhentos toda vez que tentarem amassar-nos, como quem solta "fogo!" ou "pega ladrão!" nas bordas duma ameaça. Resta nos debatermos, infernizarmos, não vendermos barato e fácil nosso encarceramento na vida que menos incomoda quem nos incomoda; não deixarmos que assassinos de sonhos tenham sonhos azuis em travesseiros de pena de ganso; não permitirmos que os promotores do inferno coletivo nanem em berço esplêndido, sem escutarem e pesadelarem os gritos daqueles que eles mandam para o abate, sem se sentirem entranhados todos os dias e noites daqueles que eles enviam para o matadouro. É nosso dever de oprimidos tornar o mais possivelmente insuportável a vida de gerar opressão, enchê-la de desconfortos, dar-lhe a cada brecha algum ensejo para remorsos, turvá-la com a verdade que desce límpida, embora amarga, diante dos olhos inocentes. Aos inocentes – pelo menos aos inocentes cientes do mundo – não cabe o silêncio; inocência não é ingenuidade, e as vítimas que mantêm a força da voz ficam obrigadas a bradar representativamente pelas que não.

Somos objetos e por muito tempo o seremos, já que assim caminha a humanidade? então muito bem (muito bem retórico): tenhamos a decência de, podendo, ser objetos que gritam. Objetos que fazem tuitaço, fazem passeata, exibem cartazes durante entradas jornalísticas ao vivo, tafulham de e-mails as caixas dos deputados e senadores, organizam abaixo-assinados, agitam vaquinha para alugar outdoors e espaço nos jornais e carros de som. Objetos que debocham por memes, charges, tirinhas, caricaturas; que soltam vídeos indignados nas redes sociais; que escrevem e compartilham textões; que ensinam inconformismo aos filhos e alunos; que xerocam e espalham panfletos; que explicam mais-valia aos colegas, aos funcionários; que dão de presente edições do Manifesto comunista em quadrinhos. Objetos que reclamam, denunciam, amofinam, alertam, insistem, insistem, insistem; objetos que são pedra no sapato, carne de pescoço, osso duro de roer, inacostumáveis com injustiças, explorações, preconceitos, insultos.

Objetos por circunstância; jamais sujeitos ocultos.

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