sábado, 27 de novembro de 2021

O trincar do ovo


De uma fofura extrema o poema da fabulosa Adriane Garcia, "Um ovo trinca": "Quando tudo está parado/ Quando o ar vira mormaço/ Quando a melancolia toma/ Nos braços todos os homens/ Um anjo piedoso faz/ Coceguinhas numa criança/ E ela ri/ E algo se rompe/ E eu sei que o mundo/ Não acabou".

Algo se rompe, sim, e continua frequentemente, diuturnamente, tinhosamente em nós – e no que perdura ao redor de nós – mesmo quando o hábito descarrila e as possibilidades se amarrotam; um grito de vida volta e meia contrai-se e se põe a coroar, e nos (re)nasce. Dá-se de que forma esse improviso de primavera? Todas; para um convalescente literal, por exemplo, o trincar do ovo está às vezes num gosto que voltou à língua, normalmente a madeleine mais simples das simples: o café com pão na chapa, o chá com bolo, o feijão reinaugurado. Para uma criança que anda cinza e coração-apertada porque mudou de escola, talvez o trincar do ovo esteja na voz da professora recente, rica e macia como a insistência do amor. Para um adolescente que se viu atropelado pela orfandade, pode acontecer que o ovo trinque num abraço descongelante de amigo, de amiga, que relaxe o peito para as lágrimas atrasadas. Para um pequeno empreendedor cuja loja foi derrubada pela pandemia, pode calhar que o ovo trinque numa palestra, num comercial, num programa dum qualquer Discovery que pulse ideias frescas e espalhe alternativas.

Ocasionalmente o vizinho está ouvindo (ou o supermercado está tocando) perfeitamente AQUELA música, e algo se rompe. Vem um doguinho buscar amizade em nós, nós que nos julgávamos desatraentes para bichos – e algo se rompe. Fazemos uma visita guiada apenas no impulso – e algo se rompe. Assistimos ao filme certo na hora exata, vemos uma foto lindíssima de árvore de Natal e nos mexemos para montar a nossa, recebemos a dose faltante de cafeína, ouvimos uma gravação de uirapuru, somos puxados por alguém para uma aula-amostra de dança de salão, temos a chance inusitada de cantar num palco, arriscamos uma receita que a parentada aaaamaaaaa, nos comovemos com a felicidade de quem ganhou um nosso presente, alguma citação nos espeta, alguma declaração nos espanta, algum pôr do sol nos embasbaca; e pronto, o ovo trinca no revés do revés de um parto, reentramos em nós com a força estranhamente permanecida.

O pulso da vida bate – a gente revida.

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