sábado, 11 de setembro de 2021

Onde estávamos com a cabeça


Aquele 11 de setembro faz 20 anos, e todo mundo que já era conscientemente alguém lembra onde estava no dia (eu estava na faculdade, olhando perplexa as televisões que exibiam umas tais hollywoodices num horário tão comercial). Mas e por dentro – todo mundo sabe onde andava? Vocês, mores, podem direitinhamente afirmar quem eram e quem deixaram de ser quando dois aviões bateram no mundo?

Claro, a reconstituição é impossível, impraticável; memórias e psiquês não se deixam recompor como legos facinhos, vai haver fatalmente a síndrome de "Missa do Galo" – machadianos entenderão – se manifestando nesse remolde que faremos inevitavelmente a nosso próprio gosto. Tentando romantizar o mínimo, direi que eu era uma pós-adolescente de boa vontade política no atacado, porém sem suficiente (in)formação política no varejo (ou o contrário?): uma criatura que ainda não se entendia ou reconhecia como de esquerda, coraçãozito mais empapuçado de amor e literatura do que de qualquer teoria que lhe botasse consistência no andaime. Fiquei sim estarrecida como todos, surpresa, não abalada – não abalada no sentido de não ferida o bastante; parece-me que, embora eu com certeza não fosse nenhum monstro de indiferença, intuía que a morte de inocentes em território americano nos afetava de maneira desproporcional à morte de inocentes promovida por americanos em outros territórios. Ou isso é recriação de minha adultice sobre a pós-adolescência que eu habitava?

Ora, eis que fui correr olhos no texto que escrevi há dez anos redondos, quando já saíra da faculdade havia muito, já trabalhava e preparava casamento. Pois, Jesus amadíssimo! não é que meti um trecho dizendo que "nós nem éramos americanos (infelizmente, continuamos não sendo)"?? Misericórdia de meus pecados, eu não sabia o que dizia. Foi decerto um momento aprisionado entre o oh, que maravilha conhecer a Disney e as primeiras noções mais sólidas, mais tijôlicas, mais irreversíveis da politização que só começou a concretizar-se mesmo a partir do famigerado 2013. Hoje nunca, never, jamé de jamé lastimaria não ser norte-americana, AINDA QUE isso implique o ser brasileira em nossa plena tragédia atual – JUSTAMENTE porque sei cada dia mais um pedacinho de como o Tio Sam, com seu dedo em riste, nos vem empurrando há décadas para o Caríbdis da tragédia, a nata do maremoto. Nem a mais vaga estocolmização me é agora possível, tantos anos após a pílula vermelha tomada, a Matrix para sempre abandonada, a avalanche de informações absorvida como um soco, como um fato, como força. Estive em Nova York; visitei o edifício reerguido no local do atentado; achei comovente e lindo que os administradores do memorial pusessem uma rosa branca no nome de cada vítima em seu respectivo aniversário; solidarizei-me de coração com os que morreram, com os que viveram, e vou estar solidária permanentemente por serem, em placenta de humanidade, irmãos nossos. Iguaizinhos aos irmãos nossos que sucumbiram e sucumbem em todas as demais ofensivas e guerras.

Mas aqui não nos faltam beós imediatíssimos para segurar, beós ali da esquina, que não vemos em hollywoodices de TV; infelizmente, desgraçadamente, não nos faltam corpos para velar aqui e agora – de fome e de covid, de desespero e de desemprego, de polícia e de milícia. Longe de nós desfazer da dor de quem, nos EUA, tem duas décadas de luto e saudade a lacrimudar em cura; é um abraço de amizade que enviamos. Só não se espere de nós uma atenção que certamente não poderemos oferecer exclusiva.

Passaremos o dia inteiro tentando resgates entre nossos próprios escombros.

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