sábado, 18 de setembro de 2021

Criar

Paulo Freire, o que fica centenário neste 19 de setembro, disse em sua amorosa sabedoria que "a tarefa mais importante de uma pessoa que vem ao mundo é criar algo". Algo bom, naturalmente; não direi "algo útil" porque utilidade é conceito excessivamente vergado aos pés da lógica neoliberal tão criticada por Paulo Freire, e de fato tão abominável; mas o que é bom se faz útil de maneira automática, nem que seja pelo belezume de sua existência meríssima.

Pessoas nasceram para criadoras, doutro modo não teriam nascido – a natureza não é de desperdiçar-se. "Ora, e hei de ser criador do quê? se não sou ninguém, se não sei fazer nada?" Absurdo e heresia: humanos não seriam humanos se não estivessem cronicamente propensos a romper o vácuo com seus oxigênios particulares; herdando alma e DNA humanos, adentra-se o mundo como uma caixa de lápis de cor compulsória, ou milmilhões de legos fervendo na cabeça. Inteligência há; talento há; o que tende a faltar são as CNTP orgânicas para que a força potencial exploda em química realizada – como esperar que alguém transborde em flor sem o mínimo de calorias diárias, sem a refeição previsível, sem uns amanhãs já colhidos de véspera com a garantia de água, paz, teto, proteção, sossego? É de se esperar, sim, que os abençoados e garantidos nas CNTP se engalfinhem com a realidade até que todos os pré-requisitos de floração cheguem a todas as energias palpitantes, produtoras. Enquanto houver gente sem seiva para dar botão, o erro não é dessa gente desseivada, o erro é de quem come e bebe da terra sem assegurar que a terra possa vir a renovar-se e beneficiar-se de cada uma das fontes possíveis.

Obviamente não será desenvolvida uma teoria da relatividade, ou escrito um Dom Quixote, ou fundada a psicanálise, ou pintada uma Guernica diariamente, esquina por esquina. Não é sensato nem saudável cobrar-se de todo vivente que se efetive num baobá, num jequitibá, num carvalho, numa dessas criatividades turbinadas que a humanidade elegeu como icônicas. Apois: muitíssimo enfadonha seria a flora terrestre se inteiramente jequitibada ou carvalhada; onde os miosótis? as gérberas? as dormideiras fofurildas? as pitangueiras? os jasmins? os cactos? as suculentas? É ESSENCIAL gente que não seja nem Einstein, nem Cervantes, nem Freud, nem Picasso; gente que construa móveis, grafite muros, eduque filhos, invente gambiarras, alimente o Face de memes, crie bordões, apresente programas, monte coreografias, bole instrumentos, escreva novelas, atue em novelas, filme e ilumine e figurinize e cenografize novelas. É preciso gente que dance de maneira única com a vassoura, que faça bonecas de pano, que planeje vitrines, que desenvolva produtos veganos, que tenha paciência para digitar textões, que solte desmentidos de notícias, que imagine atrações de parques, que modernize a iluminação pública, que instale chafarizes, que simplifique fórmulas matemáticas, que vire médico da família, que estude insetos, que componha jingles, que use os pais de cobaia para novos sabores de muffins. É preciso gente para criar tudo, tudo que segue em frente, tudo que nos atualiza, nos refresca, nos alimenta, nos diverte; na criação não existe o pouco – pode, sim, existir o anti, que é a criatura empenhada do cabelo ao dedinho em desencorajar, destruir, desanimar, matar, enfraquecer, adoecer, devastar, aniquilar. A criatura que excepcionalmente gorou, não se fez criadora, a despeito de não lhe haver faltado ambiente: faltou um sabe-se-lá-o-quê que a humanizasse e lhe desinfeccionasse o ressentimento, a fim de não ser só capaz de transbordar em pus.

Nunca saberemos; a não ser que um portador de potência humana crie um consertador de humanice extraviada – e a reinicie donde foi quebrada.

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