terça-feira, 7 de setembro de 2021

Em aberto


É o que disse o querido Emicida no Papo de segunda de ontem: tudo no Brasil ainda está em aberto. A questão da escravidão, a do genocídio indígena, as torturas e sumiços da ditadura, a independência, a república – tudo absolutamente em aberto, em suspenso, pendurado, irresolvido, irresoluto, como se nós inteiros fôssemos uma de nossas metonímicas, intermináveis obras públicas, um desses elefantes brancos de concreto e desperdício que vão virando fóssil antes de virarem carne. O Brasil são reticências que não creem em suas urgências de ponto final, ou antes reticências a que essas urgências são negadas, não são permitidas; àqueles que por uns gordos cinco séculos vêm dirigindo o país, interessa muitíssimo que a terra viva em permanente estado de loading, de depois a gente vê, enquanto a realidade por-enquanta se demora (preguiçosa, congelada, paquidérmica) na lógica das Capitanias Hereditárias. Calma, gente, já vai, já vai, devagarinho vamos atualizando o sistema.

Acontece que o sistema do Brasil só se atualiza para outra versão do mesmo sistema, ou volta e meia para versões infinitamente piores, como nossa temporada de agora – que faria o estrupício do Windows 8 parecer o Magic Kingdom. O Brasil não precisa ser atualizado, migues; o Brasil precisa ser FORMATADO. Não mais trabalhado gambiarramente, remendadamente, com uma abolição feita de papel e sem reforma agrária, com uma emancipação que manteve liderança europeia e monarquia, com um fim de ditadura que anistiou torturadores e assassinos em vez de cavar fundo e nurembergar toda a corja; não mais tocado sob a ideia condescendente e mentirosa de que pronto, passou, o importante é seguir em frente – mas sim rebootado, reorganizado, relogicizado. O Brasil tem que EN-CA-RAR o fato monstro de que suas feridas originais não fecharão nunca sem assepsia profunda, continuarão infeccionadas, gangrenadas, necrosantes até que a limpeza seja direta. Definitiva.

Sim, tentamos fazer aqui e ali alguma distribuição de renda analgésica, alguma política de cotas antitérmica, alguma mudança no ensino antiespasmódica, e é bom, é mesmo fundamental; entretanto não é a cura – o ataque que leva à cura deve fazer-se no coração da doença, e esse tal coração bate no registro colonial em que operamos desde 1500, bate no sistema de privilégios então instalado e ainda não desinstalado. Por mais que, evidentemente, arrancar de nós esse encosto histórico seja mais ou menos tão fácil quanto tirar um Venom do corpo, melhoraremos assim ou de nenhum outro modo; principiaremos a sarar na ressemente da ressemente, no olhar completamente reinaugurado de quem sequer concebe que se possa perguntar "sabe com quem está falando?", no tratamento da terra como fonte de vida e não de ordenha insana e insalubre, na fundação de uma renda básica que não é luxo e sim direito, na equiparação dos salários sem discrepância baseada em cor ou gênero, no devido reposicionamento das forças armadas como recursos do país e não o contrário. Começaremos a reviver de ramos novos, de conceitos reflorestados, de revoluções, de devoluções: devoluções dos brasis afora aos que são seus legítimos donos por luta, trabalho, amor, escolha, origem, adoção.

Margens plácidas não nos libertam; Brasil é caso de furacão.

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